CANTA LÁ QUE EU CONTO CÁ

Por José Ribamar Bessa Freire

Atirei no que vi e acertei o que não vi. Foi aqui em Natal (RN), de onde escrevo. Vim participar de um evento acadêmico – o 6º. SIGET – Simpósio Internacional de Estudos dos Gêneros Textuais, seja lá o que isso signifique – e acabei encontrando, inesperadamente, festas, folguedos, brincantes, mamulengo, literatura de cordel, bois de reis, pastoril, maracatu, dança de roda, ciranda, shows, exposições, podendo escolher entre mais de 400 apresentações, tudo isso por conta da programação do mês da cultura popular, celebrado em agosto.

Dei sorte de estar na terra de Luís da Câmara Cascudo agora, às vésperas do dia do folclore, que se comemora nesse 22 de agosto. Cai na gandaia. Assisti a vários espetáculos, entre os quais o teatro de bonecos de Heraldo Lins, mamulengueiro conhecido em todo Brasil, e o boi de reis do bairro do Bom Pastor, ambos no terreiro do Museu do Homem Missioneiro Potiguar, que organizou ainda o II Ciclo de Palestras com uma mesa redonda sobre “A Cultura da tradição nos tempos modernos”, da qual tive o privilégio de participar.

Criado em 1995 por Hélio de Oliveira, historiador e restaurador, esse museu comunitário localizado em Pium, distrito de Parnamirim, reconstitui um aldeamento missioneiro do século XVII, com 46 casas, uma igreja e um chafariz, numa organização retangular do espaço, com as casas voltadas para o grande terreiro, respeitando a estrutura arquitetônica, as fachadas, a tecnologia de construção, o material empregado e as cores. Fazem parte do seu acervo uma coleção de peças arqueológicas, mobiliário, objetos da cultura da tradição, artes visuais e utensílios domésticos.

Papel do avô

O Museu convidou para a mesa redonda a diretora do Memorial Câmara Cascudo, Daliana Cascudo Roberti Leite, a historiadora e antropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), doutora Wani Fernandes Pereira, a mestre em Ciências Sociais, Maria das Graças Cavalcanti e esse locutor que vos fala.

Coube a doutora Wani algumas reflexões teóricas sobre os conceitos de tradição e contemporaneidade, apresentados às vezes como se estivessem numa relação de oposição, ou de concorrência ou até mesmo como se fossem complementares. Afinal, qual é a fronteira entre a tradição e a modernidade? “Jamais fomos modernos”- disse a palestrante, citando o antropólogo Bruno Latour, para quem se fossemos modernos, não estaríamos opondo de forma tão radical natureza e cultura.

Ela defendeu o diálogo entre os saberes da tradição e os saberes da cientificidade, como uma estratégia para as futuras gerações. Estabeleceu ainda uma relação entre os dois conceitos em questão, tomando por referência uma leitura dos conjuntos de objetos que compõem o acervo do Museu Câmara Cascudo, da UFRN, no qual ela foi professora e pesquisadora.

Esse foi o gancho para Daliana, a segunda palestrante, que traçou a trajetória pessoal e intelectual de Câmara Cascudo, seu avô, cujo papel foi central na reflexão sobre cultura popular. Ele foi um precursor no estudo do folclore e um pesquisador da cultura tradicional, autor de mais de cem livros e de cerca de 150 artigos publicados em revistas especializadas. Em conversa antes da palestra, manifestamos curiosidade sobre o comportamento de Câmara Cascudo como avô. A neta lembrou então a definição que ele costumava dar:

– Avô é um burro brabo, que o filho amansou para o neto poder montar.

Na ocasião, foi lembrado ainda o espetáculo “Cascudo: Canta lá que eu conto cá” – encenado pelo grupo Trotamundos Companhia de Artes ao longo do mês de agosto no Parque das Dunas. Trata-se de uma viagem ao universo imaginário do conto, baseada na obra de Câmara Cascudo, adaptada à linguagem do teatro de bonecos, embalado ao som da música nordestina.

Esse espetáculo discute o ato de contar histórias, que acompanha o ser humano desde os tempos ancestrais, bem como as funções dessas narrativas orais de armazenar e transmitir conhecimentos e tradições. Ele faz parte de um projeto de extensão da UFRN que pretende elaborar um inventário da oralidade potiguar baseado nos estudos de Câmara Cascudo, pesquisando e documentando os registros orais na região do Agreste.

Da Dadi ao Dadá

O teatro de bonecos, conhecido no Rio Grande do Norte como João Redondo, foi o tema da terceira palestrante, Maria das Graças Cavalcanti, autora do livro “Dadi e o Teatro de Bonecos: memória, brinquedo e brincadeira”, cujo lançamento ocorreu no início de agosto. O fio condutor do livro é a história de vida da calungueira, fazedora de bonecos, Maria Ieda da Silva Medeiros, 72 anos, conhecida por Dadi, residente em Carnaúba dos Dantas.

– Menina, essa brincadeira é de homem – disse a mãe de Dadi, quando viu a filha, ainda muito pequena, encantada com o teatro de bonecos. Naquele momento, Dadi pensou em desistir, mas felizmente acabou dedicando toda sua vida a esculpir bonecos coloridos de luva com acessórios variados. Além de confeccioná-los, constrói narrativas em forma de diálogo entre os personagens, quando conta histórias de trancoso, diálogos amorosos, fuxicos, e até incorpora a linguagem da televisão, tudo feito com muito humor e poesia.

“Memórias de bonecos no exílio” foi o tema abordado por esse locutor que vos fala, que traçou um breve histórico do Teatro de Bonecos Dadá, feito por Euclides Coelho de Souza e Adair Chevonika de Souza. O casal fazia teatro de bonecos em Curitiba, de 1962 a 1964, quando levava seus espetáculos em sindicatos, colégios, praças e ruas e participava da alfabetização de adultos com o método Paulo Freire.

Depois do golpe militar de 1964, os dois foram processados sob a acusação de promoverem “o ensino de marxismo-leninismo a crianças de três anos”. Condenados, tiveram que se exilar no Chile e depois no Peru, onde retomaram suas atividades de bonequeiros.

O palestrante, que foi agregado ao Teatro Dadá no exílio, falou sobre diversas peças brasileiras montadas no Peru e na França, incluindo a adaptação de uma história recolhida por José Maria Arguedas, nos Andes, intitulada Sueño Del Pongo, encenada no Festival Mundial de Teatro de Marionetes na França. O Dadá demonstrou, no exílio, a capacidade criativa da cultura popular brasileira e sua universalidade, ao fazer dialogar a força da oralidade do teatro de bonecos do Brasil com línguas e linguagens de outros países.

As atividades culturais programadas no agosto da alegria em Natal acabaram atraindo a atenção de pesquisadores de diferentes países da Europa, América e Austrália, participantes do 6º. SIGET, que ouviram a voz de Patativa do Assaré: “Poeta cantor de rua, que na cidade nasceu, cante a cidade que é sua, que eu canto o sertão que é meu”.

P.S. – Faleceu aos 86 anos a ex-diretora do Grupo Escolar Cônego Azevedo, Maria Lúcia Vieira da Rocha, viúva de Flávio Rocha. O casal teve cinco filhos: Otávio, Papinha, Ana Regina, Cláudio e Lauro. “Morreu como viveu: linda e perfumada”, informa sua amiga Regina Nakamura. “Sua partida deixa um imenso vácuo de saudades” como escreveu muito bem, aqui no Diário, Felix Valois.