Cadê o Thomazinho? O Comando do Exército, com apoio da Marinha e da Aeronáutica, em documento revelado nessa semana pelo GLOBO, demonstrou que quer prolongar o suspense em relação ao desaparecimento do amazonense Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e de outros 475 brasileiros, que foram vítimas de sequestro, cárcere privado, tortura, assassinato, ocultação de cadáver e outras formas ilegais de repressão durante o período da ditadura militar (1964-1985).
Cadê o Thomazinho e centenas de desaparecidos? Essa pergunta tem de ser feita com insistência, com obsessão, incansavelmente, milhares de vezes, pichada em todos os muros do Brasil, gritada por todos os cantos e recantos, até obtermos resposta. Não vamos nos intimidar. A sociedade brasileira tem o direito de saber a verdade. O Programa Nacional de Direitos Humanos atendeu esse apelo e propôs a criação da Comissão da Verdade, ainda nesse semestre, para investigar os crimes cometidos. A proposta foi encaminhada ao Congresso, onde tramita.
A Comissão da Verdade pode responder: – Cadê o Thomazinho? O que aconteceu com o nosso menino de Parintins, que aos vinte anos viajou para estudar no Rio de Janeiro, cheio de esperanças, disposto a lutar para compartilhar com todos os brasileiros a paçoquinha de pilão, que ele tanto gostava? Quando foi preso, em maio de 1974, ele tinha aquela convicção que mais tarde seu conterrâneo, o poeta Anibal Beça, expressaria num haicai: “Apenas num gesto / o homem é capaz de vida – / chibé repartido”.
Chibé repartido
Cadê o Thomazinho, cheio de vida, que queria tão somente repartir o chibé? Sobre o seu paradeiro, conhecemos até agora apenas um documento encontrado no arquivo do DOPS/SP, que registra a data da prisão, o que foi confirmado por Relatório do Ministério da Marinha. A Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei 9.140/95, o considerou oficialmente desaparecido, em 1995, mas até hoje seu corpo não foi localizado, para que a gente possa ir lá depositar uma flor, fazer uma oração.
Acontece que o Comando do Exército não quer que formulemos a pergunta – Cadê o Thomazinho? O documento enviado ao Ministério da Defesa afirma que o regime militar saiu de cena há mais de trinta anos, que muitos envolvidos naquele período já morreram e que “testemunhas, documentos e provas perderam-se no tempo”. Alega que a criação da Comissão da Verdade “poderá provocar tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados a nova discussão” e que exigir resposta a essa pergunta “parece tão somente pretender abrir feridas na amálgama nacional”.
É brincadeira. Quer dizer que perguntar cadê o Thomazinho é, então, “abrir ferida na amálgama nacional”? Deixa ver se eu entendi bem: a ferida não foi aberta por agentes do Estado, pagos pelo contribuinte, que torturaram e assassinaram quem estava preso, o que não se faz nem com o bandido mais facínora, muito menos com um lutador social. Ela é aberta – segundo o documento – por nós, que queremos saber onde estão enterrados nossos mortos. Eu torturo e mato teu irmão, mas se você quiser saber onde ele foi enterrado, você “abre uma ferida”.
Na realidade, para quem perdeu entes queridos, a ferida está aberta desde o momento em que eles “desapareceram”. Ela está sangrando desde então e a dor pode ser mitigada pela Comissão da Verdade, se consegue esclarecer onde estão Thomazinho e os outros 475 desaparecidos. Cadê o Thomazinho? O documento do Comando do Exército acha que a simples formulação dessa pergunta é “revanchismo”, “promove retaliações políticas” e “mantém acesa questão superada”.
O desaparecimento do Thomazinho é uma “questão superada”? Superada para quem, cara pálida? Como “superada” se não obtivemos ainda resposta ao que nos angustia? Além disso, só pode ser considerada retaliação política por aqueles que têm culpa no cartório e que temem a verdade, o que não é o caso da maioria dos militares que não compactuaram com crime tão hediondo.
Não é função das Forças Armadas defender torturadores. Essa defesa é, no mínimo, estranha, e depõe contra outros militares que, embora favoráveis à ditadura, não concordavam com o uso da tortura, alguns deles foram inclusive punidos por isso. A Comissão da Verdade pode nos mostrar que existiram oficiais dignos e íntegros como o general Peri Bevilaqua, nomeado, em 1965, ministro do Superior Tribunal Militar e cassado em 1969 porque se manifestou contra os crimes cometidos nos porões da ditadura. Queremos conhecer e reverenciar esses oficiais.
Anistia política
Num programa na Globo News, sexta-feira, a jornalista Mônica Waldvogel discutiu o tema, entrevistando o tributarista Ives Gandra e o ex-deputado Airton Soares. Na maior cara de pau, Ives Gandra, que está sempre do lado da sombra e também não quer saber onde está Thomazinho, veio com aquele papo manjado de que devemos colocar uma pedra sobre essa questão, porque a Lei de Anistia aprovada há mais de trinta anos pelo Congresso Nacional já concedeu o perdão a quem cometeu crimes políticos nesse período conturbado. Está tudo zerado.
O que é, afinal, um crime político beneficiado pela anistia? O jurista Dalmo Dallari entende que o crime hediondo da tortura não foi crime político e que a identificação e julgamento dos torturadores é uma necessidade para demonstrar que historicamente “a sociedade brasileira jamais compactuou com as práticas de um regime que limitou criminosamente a oposição e a liberdade de expressão, mesmo que tais práticas não possam mais ser punidas pela prescrição”.
Se a Lei da Anistia extinguiu a punibilidade, ela não determinou nem a ocultação de cadáveres, nem proibiu a identificação dos torturadores. As famílias e os amigos dos “desaparecidos” políticos tem o direito de saber o que aconteceu com eles, da mesma forma que a sociedade tem o direito de conhecer a história, para evitar que tais crimes hediondos sejam cometidos outra vez. Foi o que foi feito na Argentina, no Chile, no Peru.
Esse é, felizmente, o entendimento da nova ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, nascida depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, para quem a Comissão da Verdade é pré-condição para um processo efetivo de conciliação nacional. Esse é também o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA que condenou o Brasil por não esclarecer aos parentes o paradeiro dos corpos das pessoas desaparecidas.
Como é que alguém pode ser contra que se apure a verdade? Até os índios, mantidos tradicionalmente à margem, estão querendo, agora, saber o que aconteceu com os Waimiri-Atroari, os Krenhakore, os Kané, os Suruí, os Cinta Larga e tantos outros que foram assassinados porque se opunham aos projetos da ditadura militar, embora “nenhum desses homens, mulheres e crianças sejam citados nas relações dos desaparecidos”, como reclama com razão Egydio Schwade em artigo recente publicado no Blog Casa da Cultura de Urubuí (Amazonas).
Cadê os Thomazinhos? Cadê os índios das nove aldeias do rio Alalaú, que foram massacrados? Temos de insistir com a pergunta em cada parágrafo, em cada linha do que for escrito para não nos cobrirmos de vergonha e opróbrio. Não podemos deixar essa dívida para os filhos e os netos da Pátria Mãe Gentil. A história do Brasil não é uma telenovela para ficarmos nos perguntando indefinidamente: quem matou Salomão Ayala, Odete Roitman ou Saulo Gouveia? Aliás, até mesmo as novelas só terminam quando se entende a cena do crime. A novela do Brasil ainda não terminou.
Cadê o Thomazinho? Mil vezes seguiremos, fiel, insistindo: Cadê o Thomazinho? A gente só sossega, depois de ter uma resposta a essa pergunta que Dona Maria, sua mãe, morreu fazendo. Nós perguntamos no nome dela, da sua nora Miriam e de seus netos Larissa e Togo. Cadê o Thomazinho que queria repartir o chibé nacional?