Cadê a clave de sol? O canto na escola

Para Vanessa Dutkus Saurusaitis, missionária da música

Eu vivo em tempos sombrios […] Que tempos são esses em que falar de flores é

quase um crime, pois significa silenciar sobre tanta injustiça?  (Bertold Brecht).

Peço licença para cometer um quase-crime textual ao ignorar, na coluna de hoje, a quadrilha no poder e os habeas-corpus concedidos por Gilmar Mendes a tucanos corruptos em flagrante obstrução de justiça. Nesses tempos temerosos de “fezes, maus poemas e alucinações”, opto aqui por falar de flores e canções cantadas antigamente nas escolas, que nem o Google registra.

Começo com a primeira que aprendi no Jardim-de-Infância, em 1953, no Colégio Aparecida em Manaus, com uma freira, a Irmã Cecília:

Coelhinho, meu amigo / venha conversar comigo.

Ra-ra-rá, ro-ro-rô / venha conversar comigo.

A segunda canção que cantarolei em minha atribulada existência foi o Bem-te-vi, acompanhada de linguagem gestual, movendo as asinhas:

Eu conheço um passarinho / que pipila no seu ninho …

Bem-te-vi, bem-te-vi, cantarola ao romper da aurora

repipiupiu, repipiupiu, / passarinho lá no céu se ouviu.

Muitas outras registradas na memória musical emergem da infância distante. Mas na época, tive dificuldade de aprender uma delas, o que, agravado pelo mau comportamento, me valeu uma reprovação. Até hoje uma de minhas irmãs, que sempre tirou boas notas, morre de vergonha quando se toca no assunto nas reuniões de família:

– O único brasileiro que conheço reprovado no jardim-de-infância! Uma façanha! – diz ela com ironia.

De qualquer forma, ao repetir o ano, fixei, finalmente, a canção das vogais:

A, A, A, grasna o pato quá quá quá

É, É, É, berra a ovelha mé, mé, mé

I, I, I, canta o grilo cri-cri cri-cri

O O O, canta o galo cocori-cocó

U, U, U, muge a vaca mu, mu, mu.

Villa-Lobos

As escolas cantavam assim graças ao maestro Heitor Villa-Lobos, nomeado em 1931 Superintendente de Educação Musical do Distrito Federal pelo então secretário de Educação do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira. Inspirado nele, Vargas assinou dois decretos que disseminaram o ensino de Música, Canto Orfeônico ou simplesmente Canto por todas as escolas do Brasil, enriquecendo os currículos do jardim, primário e ginasial e ainda dos cursos de formação de professores, cujas diretrizes foram formuladas pelo Conservatório Nacional do Canto Orfeônico.

Faziam parte do repertório canções populares regionais e tradicionais, selecionadas de acordo com a faixa etária dos alunos. Na minha escolaridade, cantei Alecrim Dourado, Escravo de Jó, O Cravo brigou com a Rosa, Uma pequena Aranha, O Sapo não lava o pé e até mesmo nas aulas de canto e solfejo, no ginásio, Frère Jacques e a enluarada Au Clair de la lune. A visão nacionalisteira incluía ai Hino Nacional, Hino à Bandeira, Hino da Independência – “o japonês tem quatro filhos” – no qual ou a Pátria ficava livre, ou a gente morria pelo Brasil. No curso pedagógico, no Instituto de Educação do Amazonas, com o maestro Nivaldo Santiago e Cleomar Feitosa, nossos professores, cantávamos Villa-Lobos: Oh Tupã, Deus do Brasil e Trenzinho Caipira.

O canto orfeônico é o canto das multidões, como mostrou Villa-Lobos, em 1942, ao reger 44 mil estudantes no Estádio do Vasco da Gama no Rio de Janeiro. Isso foi possível porque as escolas cantavam diariamente na sala de aula. até 1971, quando o general Garrastazu Médici sancionou a lei que praticamente baniu a música dos currículos, afogando-a no que a LDB da ditadura chamou de Educação Artística.

A partir daí, a música perdeu seu espaço próprio e deixou de ser curtida no cotidiano escolar como linguagem artística e prazerosa na busca do conhecimento. A ditadura, que é feia, tortura e nos submete à barbárie, censurou a música, que é bela e nos redime, restringindo-a a um lugar secundário, às festinhas, comemorações e formaturas. Qualquer pessoa, afinada ou não, pode cantar. Ditadores, porém, não cantam, nem deixam cantar, eliminam um direito de todos – a educação musical – tão necessária ao desenvolvimento pleno do aluno. A exceção foi Vargas pela influência de Villa-Lobos.

As freiras e o canto

Tive a sorte de cursar o primário e o ginásio antes do golpe de 1964. Por isso, convivo até hoje com as vozes de minhas professoras ao longo do curso primário: a fanhosa Irmã Xavier, a desafinada Irmã Dolores e as Irmãs Paula e Isabel, mais melodiosas. No ginásio, Irmã Loreta, a noviça rebelde. Com elas, a gente cantava sempre, afinando a audição e desenvolvendo o lado lúdico, a sociabilidade, a criatividade, a memória, o raciocínio. Cantigas e exercícios de canto contribuíam para a aprendizagem e o letramento.

Essas freiras eram da Congregação do Preciosíssimo Sangue transplantada ao Amazonas, em 1947, por quatro religiosas norte-americanas – Julitta, Marciana, Georgiana e Francisca – que vieram do Kansas convidadas pelos padres redentoristas para criar escolas paroquiais mistas.

A Congregação logo incorporou jovens amazonenses, como Noeme Cinque (1913-1988), nascida em Urucurituba e moradora do bairro de Aparecida. Com o nome de Irmã Serafina, ela foi professora no Colégio de Aparecida antes de ser deslocada para Altamira, no Pará, em 1971, quando testemunhou a tragédia da abertura da Transamazônica. Suas “virtudes heroicas” foram proclamadas pelo Papa Francisco, que lhe conferiu o título de “venerável”.

Duvido que os bairros de São Raimundo e Matinha tenham personalidades projetadas internacionalmente como Terezinha Morango, quase miss universo e a venerável Serafina, quase santa.  Aliás, se ela for canonizada, serei o primeiro brasileiro a ter recebido um cascudo e um puxão de orelha de uma santa. Foi assim: não me deixaram ir ao banheiro, subi no parapeito da janela da sala que dava para o quartel dos bombeiros e dei uma sonora mijada na cabeça de um “soldado do fogo”. Se isso prejudicar a canonização, tudo bem, mudo meu depoimento. Mas aconteceu mesmo.

O episódio mostra que a gente cantava, é verdade, mas o pau também cantava. Depois da morte de Villa-Lobos, para quem qualquer um podia cantar sem ter conhecimento da teoria musical, peguei muita reguada na bunda da Irmã Loreta, que agia diferente em suas aulas de Canto Orfeônico em 1961. Ela exigia o domínio de noções de música ancorado num metadiscurso. Tinha um inefável gozo musical quando pronunciava várias vezes, na mesma pergunta, o nome completo de cada aluno.

– José Ribamar Bessa Freire (doravante JRBF para simplificar, mas ela falava por extenso), me diga JRBF, o que é uma clave de sol? Não sabe JRBF,  não sabe o que é uma clave de sol, JRBF? (reguada na bunda, passava ao seguinte) – Me diga Júlio Celso de Lima Seixas, o que é um clave de sol? JCLS não sabe o que é uma clave de sol? Etc etc etc

Ninguém sabia. Aliás, pra falar a verdade, até hoje eu não sei. Cantar, tudo bem, gosto muito. Mas clave de sol é dose. Sou incapaz de ler partitura.

A propósito, Leitor (a) Do Taquiprati (LDT) me diga, LDT, o que é uma clave de sol, LDT?

P.S. – “E no entanto é preciso cantar / mais do que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade”, declama Vinicius de Moraes. Parece que a música está voltando às escolas graças a “missionárias” abnegadas. Uma delas, Vanessa Dutkus Saurusaitis, foi minha aluna na UNIRIO e é professora de artes em Niterói. Na Orquestra Interculturalidade do Programa Aprendiz Música nas Escolas, que ela organizou, acaba de fazer um arranjo de música guarani, executada por seus alunos, que leem partitura e tocam diferentes instrumentos. Essas lembranças foram ativadas em conversa recente com ela.