Por Osíris Silva:
Lendo recentemente um ensaio de Thomas Mann em seu “O Escritor e sua Missão” a respeito de Tolstoi, o autor de A Montanha Mágica e Morte em Veneza (quem não leu o livro ou assistiu ao filme?), observa que Tolstoi era considerado o grande visionário do corpo, em contraposição a Dostoiévski, o visionário da alma. Disse mais: onde há psicologia existe também patologia; o mundo da alma é o da enfermidade, mas o mundo da sanidade é o do corpo. Assim, penso temerariamente que o Brasil enfrenta muitas dificuldades para se posicionar entre esses mundos. Não consegue conviver com suas realidades, seus fantasmas, suas idiossincrasias e assimetrias. Questão de deformação sociocultural e existencial? Déficit de visão histórica, que leva o país a não ser capaz de proceder leituras objetivas e pragmáticas de seu passado? Diversas nações experimentaram fases tormentosas, cruciais; envolveram-se em conflitos não raro resolvidos pelas armas em guerras intestinas, regionais e mundiais. Viveram sua Guernica.
A França e sua Revolução de 1789, os Estados Unidos nos episódios da Guerra da independência travada contra a superpotência do século XVIII para o XIX, a Inglaterra; os mesmos Estados Unidos quando da Guerra Civil Americana, a Guerra da Secessão (1861-1865); a Alemanha, a Itália e o Japão na II Guerra Mundial (1939-1945); ou a China ante o fracasso da Grande Marcha para a Frente, de Mao, quando, em três décadas morreram 30 milhões de chineses de fome e outras necessidades humanas fundamentais; assim também as Coreias divididas nos anos 1950 por sangrenta guerra intestina e o Vietnam, destruído, mas vencedor de uma guerra sem quartel com a superpotência americana travada entre 1965 a 1985.
Ninguém vive do passado, embora seja fundamental preservar e potencializar nossa memória histórica. Um país sem memória é um país sem futuro. Alguns autores consideram que história é o estudo do passado para entender o presente, mas de um passado vivo, que está presente em nós. A relação “passado-presente” constitui a essência da história. São as inquietações do presente que nos levam a reinterpretar o passado. Ao não resolver em definitivo seus conflitos com o passado o Brasil não avança política, econômica, cultural, social e tecnologicamente.
A despeito da redemocratização deflagrada a partir da eleição de Tancredo Neves em 1985 e a vigência da Constituição de 1988, a nação conseguiu estabelecer novo contrato social e levar a cabo reformas de base pelas quais, nós os estudantes brasileiros, tanto lutamos nos anos 1950, 1960 e 1970. Desprovido de vontade firme e irredutível, o brasileiro não foi capaz até hoje de solucionar seus conflitos: pelas armas ou pela via parlamentar. Como mudar radicalmente a estrutura política do país, como confiar em um Congresso corrupto, clientelista e fisiológico in extremis? Além do mais, anexo, suporte e instrumento do Executivo com o qual convive (ou sobrevive) atolado num mar sem fim de corrupção; atado à ineficiência de um sistema de governo que solapa esperanças, destrói a cidadania e que quase nada constrói de relevante.
O Brasil precisa avançar conquistas, reformar-se, reinventar-se. Ao que penso por meio de uma comissão de notáveis livres de comprometimentos políticos e inteiramente dedicados à causa da nacionalidade. Na Espanha, o quadro conjuntural era ainda mais complexo; vinha de uma sangrenta guerra civil (1936-1939), que solidificou o cruel regime ditatorial sob Francisco Franco. Após a morte do ditador em 1975, o país conseguiu se realinhar e se reconciliar politicamente por meio do Pacto de Moncloa, marco da redemocratização da Espanha, assinado em 25 de outubro de 1977 por partidos políticos, sindicatos e empresários no Palacio de la Moncloa, sede do governo espanhol, em Madri. Graças a essa reconciliação a Espanha cresceu, se desenvolveu e hoje é um dos países europeus de economia mais estável e próspera. Por que o Brasil não pode fazer o mesmo?