“Qui a un bon cou a peur” (Joseph Au-delà de la Mer Davantage)
– Quem tem pescoço francês tem medo. Da guilhotina, bien sûr.
Essa é uma das conclusões de Jean Delumeau em sua “História do medo no ocidente, 1300-1800”, escrita na época em que era professor de História das Mentalidades no Collège de France. Sua obra, conhecida no Brasil a partir de 1977 quando ministrou aulas na USP, foi resenhada por Joseph Davantage, celebridade municipal do bairro de Aparecida, em Manaus, onde nasceu. “Posto que pessoas de qualquer nacionalidade têm pescoço em francês, o medo é universal”, deduziu o cronista em sua coluna “Voici pour toi” ou “Va te faire foutre” na versão certeira de Charlie Hebdo.
Cada vez que meu pescoço francês fica apertadinho, como agora, consulto este livro que me ajuda a administrar os temores que me afligem. Confesso que, aos 71 anos, estou morrendo de medo de ser infeliz, receoso do que as urnas vão falar neste domingo, quando milhões de eleitores definirão os destinos do Brasil. Olho ao meu redor e vejo que se trata de um sentimento compartilhado. Amedrontados estão minhas alunas e alunos, colegas, familiares, mulheres, negros, índios, gays, militantes dos movimentos sociais, ameaçados por um candidato que nos insulta, nos agride e considera protestos pacíficos como “ativismo de terroristas que devem ser banidos do país”.
A todos eles, recomendo este livro que restitui o legítimo lugar do medo na história da humanidade. Apoiado em documentação de arquivos, o historiador francês descreve o medo de cobras peçonhentas e de almas penadas que vagavam pela Europa disseminando a peste negra, retrata o medo da morte, do mar, das bruxas, do inferno, do satanás e de seus agentes – a mulher, o judeu, o muçulmano. O medo da desordem, da noite, da escuridão, da fome, das crises econômicas e – olhem só – o medo de boatos, as fake news medievais disseminadas pelas igrejas e cabarés que reforçavam crenças infundadas. Com qual objetivo?
– “Os senhores feudais – ele escreve – usavam o medo para explorar e oprimir servos e camponeses”, da mesma forma que hoje se usa o fantasma do comunismo, da Venezuela e da bandeira vermelha. Com os ignorantes, funciona.
Ladrão de sonhos
Foi o medo real ou imaginário que fez crescer o antissemitismo na Europa a partir do séc. XIV, que massacrou judeus, que manteve as mulheres subjugadas, que torturou cientistas como o teólogo Giordano Bruno, queimado vivo em 1600, acusado de “imoralidade” – o kit gay fake da época – e de heresia por defender o que hoje é ensinado em qualquer escola do mundo: a terra não é o centro do universo, que é infinito. O medo pode bloquear o raciocínio, matar o pensamento e roubar nossos sonhos, como nos mostra a literatura. Pode nos fazer crer que o sol é que dá voltas em redor da terra.
O autor faz um balanço do discurso literário e iconográfico, avaliando a representação do medo no romance, no conto, na poesia, no teatro, na pintura. Desde a Antiguidade até o Renascimento, literatura e arte enalteceram heróis intrépidos e subestimaram vilões “encagaçados”. Até hoje o “medo” está tão estigmatizado, tão maculado de vergonha, que a gente esconde tal “covardia”, considerada a menos heroica das paixões humanas. A tendência é camuflá-lo. No entanto, o historiador francês nos adverte que “sem medo, a espécie humana não teria sobrevivido”, porque é ele que nos faz tomar consciência do perigo iminente, nos dá armas para evitá-lo e renova nossas esperanças.
Admito que estou com meu pescoço francês na mão, com a invasão de 30 universidades pela polícia numa tentativa de intimidação, embora o STF, ainda não fechado por dois soldadinhos, tenha condenado a operação. Recorro, então, à “História do Medo”, que funciona como um bálsamo num período eleitoral como esse que vivemos no Brasil, porque de repente vemos que o medo faz parte da vida da gente, que a história nos ensina como enfrentá-lo, que precisamos aprender a conviver com ele, considerando-o não como algo necessariamente negativo, mas como um sentimento de autopreservação. Neste caso, é o medo que, paradoxalmente, nos dá coragem.
O discurso de ódio do capitão-candidato transmitido em telão no domingo (21) na manifestação na Avenida Paulista nos envergonha como nação diante de nós mesmos e do mundo, nos empobrece como humanidade, golpeia nossa inteligência e nossa sensibilidade e mostra que o Brasil está gravemente doente se considerarmos os urros dos manifestantes ao ouvirem o discurso alucinado de seu – digamos assim – líder. Ele ameaçou “banir os marginais vermelhos” e afirmou que seu adversário, com quem ele não tem a coragem de debater, vai apodrecer na cadeia. Dessa forma, ele sozinho assume o papel do Judiciário, a instituição que seu filho – o “garoto” – ameaçou fechar com um cabo e dois soldados.
Divorciadinha do Brasil
– A faxina agora será muito ampla, essa pátria é nossa, não é dessa gangue que tem bandeira vermelha e a cabeça lavada – disse o candidato botando espuma pela boca e chocolate pelo pé, como o cachorro quando late no buraco do tatu, num discurso incompatível com o perfil de um estadista democrata. Ele quer ser presidente apenas de metade dos brasileiros, que se lixe a outra metade formada por negros, mulheres, gays, índios. Anunciou que caso eleito, tipificará ocupações de terra como terrorismo, o que levou o movimento indígena, que luta contra a usurpação de seus territórios desde 1500, a pensar que o capitão vai colocar em cana os fazendeiros e os agronegociantes.
Mas a atriz global e pecuarista Regina Duarte, dona da fazenda “Minha Santa”, ex-namoradinha e atual divorciadinha do Brasil, penetrou na alma do capitão e, felizmente, colocou os pingos nos is:
– Bolsonaro tem uma alma democrática, suas declarações homofóbicas, racistas e a favor da tortura são frutos de um homem com “um humor brincalhão típico dos anos 1950, que faz brincadeiras, mas que são da boca pra fora”.
Só vota no capitão, quem não acredita no que ele diz, quem acha que seu discurso em favor da tortura é uma “brincadeirinha”. Quem crê, se assusta. As urnas nesse domingo dirão se o Brasil está mesmo gravemente doente, se vai para a UTI ou se entra em convalescença. Suspeito, talvez porque deseje tanto, que haverá uma virada, confiando no escritor irlandês Bernard Shaw, morto em 1950, para quem “a democracia é um sistema que faz com que nunca tenhamos um governo melhor ou pior do que merecemos”. O Brasil não é uma lata de lixo. Merece coisa melhor.
Caso a virada não ocorra, saberemos administrar nossos medos, fazendo uma oposição organizada a qualquer tentativa de sepultar a democracia e de pisotear nossos direitos. Os índios, que estão resistindo há 518 anos, podem nos ensinar como sobreviver em condições adversas.
Leonardo Boff, que leu a História do Medo, concluiu em outro contexto com uma reflexão que continua válida:
– O medo é inerente à vida porque “viver é perigoso” como nos adverte Guimarães Rosa. Por isso, viver comporta riscos que metem medo. Mas os riscos nunca são só riscos. São a chance do novo, a abertura de uma outra esperança”.
– Talvez a Europa tenha que reaprender com o Brasil o que é a esperança” – escreveu Jean Delumeau, hoje com 95 anos, ao retornar ao nosso país em 1997.
“Sem medo de ser feliz” era o nosso sentimento em eleições passadas. Houve um retrocesso. Estamos na defensiva. Agora, estamos “com medo de ser infeliz”. Milhões de eleitores, de um lado e de outro, vão votar impulsionados pelo medo. De qualquer forma, vos deixo aqui com a “Tonada del viejo amor” de Jaime Dávalos, um poeta argentino “salteño como las empanadas”, cantada por Eduardo Falú. Está dirigido a sua amada, mas podemos estendê-lo à nossa patriazinha amada e gentil:
– No tengo miedo al invierno, con tu recuerdo lleno de sol.
É isso, o medo me dá coragem, que vem das lembranças ensolaradas de nossas lutas. Qualquer que seja o resultado da eleição, ce n’est qu’un début, continuons le combat.