Entrevista para Rute Pina
Brasil de Fato | São Paulo (SP), 30 de Junho de 2019 às 10:07
O ex-ministro da Ciência e Tecnologia Roberto Amaral enxerga com pessimismo o futuro da ciência e tecnologia brasileiras. Ele afirma que, com os cortes em bolsas de pesquisa acadêmicas, o Brasil está “caminhando para um atraso irrecuperável”.
“É um governo que está assassinando o futuro do país”, analisa o advogado e cientista político. “E isso quando nós estamos ingressando na chamada 4.0. Já perdemos a revolução industrial e vamos perder essa, agora. E isso vai ser definitivo. O mundo vai ficar separado em países produtores de conhecimento [tecnológico] e países importadores de conhecimento. E esse buraco não se preenche mais.”
Amaral esteve à frente do ministério durante o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje, o advogado cearense coordena o Grupo de Trabalho de Ciência e Tecnologia da Frente Brasil Popular, entidade que integra mais de 50 movimentos populares, sindicatos e partidos de esquerda.
Ele, que também é ex-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), concedeu entrevista ao Brasil de Fato em que analisa o novo jogo de forças da política institucional. Ao avaliar a articulação do governo no Congresso Nacional, o advogado de 79 anos é categórico ao dizer que Jair Bolsonaro ele não está interessado na unidade do país, mas “em acentuar a divisão”.
“Ele não está interessado com o processo legislativo. Ele está interessado em uma organização de resistência de conservação de poder que vai para além das relações clássicas de legislativo e executivo”, analisa Amaral.
“Bolsonaro está rompendo, na sua forma, com o presidencialismo de coalizão e fazendo uma forma nova de populismo autoritário”, sintetiza.
Confira trechos da entrevista.
Brasil de Fato: Essa semana o STF negou dois pedidos de HC do ex-presidente Lula. A Corte o julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para o segundo semestre, mesmo depois da divulgação das matérias do The Intercept Brasil. Qual a avaliação do sr., que tem formação no direito, do judiciário nesse contexto?
Roberto Amaral: O que você está chamando de corte é um dos pilares do sistema político que de forma concertada — ou seja, poderes judiciário, legislativo, executivo e mercado — construiu essa operação que se chama Lava Jato.
Nós estamos em um novo regime ainda inominado, mas de claras bases militares. E base militares revanchistas. Termina o ciclo do lulismo e se instala um novo ciclo que, mais do que suceder o ciclo anterior, pretende ser a sua negação. E, ao mesmo tempo, diz que é sua consequência.
Nesse processo, o Judiciário desempenhou um papel crucial. E hoje o Supremo é um instrumento de instabilidade política e institucional. O processo de oposição à Dilma e da instalação do novo regime fica claro quando o senhor Gilmar Mendes consegue uma liminar e impede a posse de Lula na chefia da casa civil. Em cima de um crime cometido pelo juiz moro, que foi o vazamento e uma gravação ilegais de uma conversa entre a presidente da República e o ex-presidente. E isso ele faz na véspera de um recesso [no dia 18 de março de 2016, uma semana antes da Páscoa]. Ou seja, sem condições da medida liminar ser julgada no mérito pelo plenário.
E isso tem sido a prática até aqui. Até hoje ele não julgou a interpretação do dispositivo constitucional, que condiciona a execução das penas de prisão ao esgotamento do processo. Ou seja, o trânsito em julgado. O processo está pronto há um ano e não se julga.
E por que essa demora?
É um processo político. Na sua pergunta, você lembrou que tenho formação jurídica. Eu tenho formação política, mas nada disso é direito. Nós não estamos diante de questões jurídicas do Supremo. Nós estamos diante de questões políticas do Supremo. Então, ele agiu politicamente, de novo, nessa decisão de agora.
E o que é lamentável é que nós permaneçamos hoje, como estamos desde lá atrás, sempre esperando algo dos outros. Esperando como é que vai ser o julgamento [no Tribunal Regional Federal] da 4ª Região, esperando como vai ser o julgamento do STJ, esperando o julgamento do habeas corpus, esperando o da suspeição, esperando Godot… Esperando quem não ficou de vir.
O STF vai julgar a suspeição de Moro por ter agido politicamente, mas o sr. diz que o STF age politicamente também…
O que se discute agora é se as revelações do [do site] The Intercept podem ser consideradas uma vez que elas não foram ainda apreciadas pela justiça. Ora, a parcialidade do juiz não tem nada a ver com isso. Ela vem de antes.
A parcialidade já foi decretada quando ele tenta a prisão coercitiva de Lula, sem que ele houvesse sido citado para depor. Ou sem que ele tivesse se recusado a depor. Ficou clara a parcialidade quando ele vaza a conversa telefônica. Ficou clara quando ele vaza a delação premiada do Palocci com intuito político. Ficou clara quando ele aceita que o fato de não haver prova de que esse infeliz apartamento era de Lula. O fato de não haver provas era a prova de que era uma simulação… Isso é kafkiano.
As revelações do The Intercept são um plus, uma coisa que vem a mais. Se houvesse o mínimo de dignidade, se não fosse um processo político, isso já tinha sido esclarecido. O problema é que é um processo político. E a parcialidade dele faz parte disso. Não é uma excrescência, mas um fato lógico e necessário nesse processo.
Mas se a politização do judiciário é estrutural, da primeira instância à máxima corte, quais são as saídas?
A esquerda precisa conquistar o governo em condições de fazer o que não fez. Se for para repetir a mesma dose, não adianta.
Mas, se tivermos condições, nós precisamos rediscutir o pacto federativo, o Ministério Público, o poder judiciário. Nós precisamos ter coragem para discutir regulamentação dos meios de comunicação de massa eletrônicos. Precisamos discutir a formação dos oficiais militares brasileiros… A Constituinte não disse que tipo de generais nós queríamos, eles, então, estão dizendo que tipo de República devemos ter.
Se essas questões não forem enfrentadas, seja qual for o preço disso, nós estaremos sempre com os mesmos problemas se renovando e se agravando. Até nós chegarmos em um impasse.
Um dos erros que Bolsonaro admite no início de governo é a inexperiência e a falta de articulação política. Como o sr., que esteve na presidência de um partido, avalia a articulação do governo no Congresso Nacional?
Eu tendo a ver de forma um pouco diferente. Nós estamos acostumados com os padrões clássicos do presidencialismo de coalização. Nós estamos enfrentando uma experiência nova. Precisamos observar melhor o que está ocorrendo. Bolsonaro está rompendo, na sua forma, com o presidencialismo de coalizão e fazendo uma forma nova de populismo autoritário — que é o diálogo direto com suas bases.
Com esse diálogo, ele pretende pressionar o Congresso, os meios [de comunicação], o judiciário e o sistema político. Se vai dar certo, isso é outra questão.
O que estou vendo é uma tentativa de um projeto mais autoritário e protofascista, que você está chamando de bolsonarismo, se acentuar nos últimos momentos. Como se ele estivesse fazendo um esforço para se libertar das forças com as quais ele se comprometeu. Como, por exemplo, ele tentasse se libertar do jugo dos generais para dialogar mais com a baixa oficialidade.
Ele está fazendo acenos para o fundamentalismo pentecostal, não foi por acaso a presença dele na Marcha para Jesus; com as forças organizadas pela direita. Também não há um ato ou acontecimento secundário em um quartel, uma formação de cabo ou sargento, que ele não esteja presente… Ele continua falando como antigo deputado estadual e federal do Rio de Janeiro, que falava às tropas.
Ele está falando diretamente para essas massas, para todo o sistema de repressão do país. As únicas propostas que ele fez na Previdência foi para proteger policiais militares e civis. Ele está falando para as milícias. Prometendo armar as milícias, o agronegócio e o campo, dando armas e liberdade de uso.
Eu acho que essa questão deve merecer nosso foco muito mais se ele está ou não com crise na condução do processo legislativo. E vou dizer mais: não sei se ele está muito interessado com o processo legislativo e com certas propostas que ele manda para o Congresso. Diante da plateia dele, se o Congresso não aprovou, a culpa é do Congresso.
Ou seja, ele não está interessado com o processo legislativo. Ele está interessado em uma organização de resistência de conservação de poder que vai para além das relações clássicas de legislativo e executivo.
Mas uma falta de governabilidade não pode afetar sua popularidade, como a pesquisa do Ibope mostrou nesta semana?
Precisamos saber se a queda da popularidade dele está com relação à votação dele. Uma coisa é a votação dele, outra é a popularidade que ele tinha como presidente ao ser eleito na posse. Como todo projeto protofascista, ele não está interessado na unanimidade e na unidade do país. Ele não está interessado em compor. Ele está interessado em acentuar a divisão. Ele está, cada vez mais, preocupado em manter aquele nicho, de 57 milhões de pessoas que votaram nele.
E como a oposição está nesse novo jogo institucional?
Nós estamos fazendo o que pudemos. Oposição no Congresso.
Mas nos ressentimos em não ter um imprensa operária, partidária e uma imprensa alternativa. O que resta de espaço de campo para ocuparmos é muito pouco porque estamos sem canais, limitadíssimos.
Estamos sofrendo com a crise do PT, com a crise dos sindicatos… O que nós temos a favor é o processo histórico e o governo que nos ajuda muito, porque ele erra de manhã, de tarde e de noite.
Mas, nisso tudo, há uma coisa que precisamos ressaltar muito: estamos hoje trabalhando em um nível de unidade quase inédito, que alcançamos só nos anos das Diretas Já. No Congresso, há praticamente uma unidade dos nossos partidos. A política de frentes perpassa hoje não só os partidos do campo progressistas, mas como as organizações. Acho que essa é a grande lição. E, ao mesmo tempo, há expectativa e esperança que vamos avançar e resistir ao que está aí.
O senhor está no grupo de trabalho da Frente Brasil Popular sobre Ciência e Tecnologia, área da qual já foi ministro. Qual o maior desafio do Brasil nesta área, hoje?
A primeira coisa que gostaria de falar é que estamos muito assustados e eu diria justamente assustados com os cortes. Cortes na ciência e tecnologia, na inovação, no fomento. O corte também é na educação, na graduação, pós-graduação, no ensino e pesquisa… E o corte começa até na formação básica. Só na área de alfabetização, o corte beira R$ 500 milhões.
Estamos cortando quando países já desenvolvidos estão aumentando seus investimentos. Por exemplo, a Alemanha que vai investir bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento de inteligência artificial.
É gravíssimo que nós, além de não acompanharmos o desenvolvimento desses países, estejamos andando para trás. Só que isso ainda não é o mais grave. O mais grave é a política do governo. O mais grave é o fato de ter um governo contra o conhecimento. Isso não é observação minha. Ele verbaliza isso. É um governo que é contra a filosofia, as ciências humanas, as pesquisas. Um governo que é assumidamente contra a universidade pública, que responde por 95% da pesquisa desse país.
E isso quando nós estamos ingressando na chamada 4.0. Já perdemos a revolução industrial e vamos perder essa, agora. E isso vai ser definitivo. O mundo vai ficar separado em países produtores de conhecimento [tecnológico] e países importadores de conhecimento. E esse buraco não se preenche mais.
É um governo que está assassinando o futuro do país. Essa que é a questão central, talvez a mais grave.
E a gente ainda não conseguiu explicar, para a sociedade brasileira, qual é a relação dela com o que se faz nas universidades. A universidade fica trancada na sua ostra e a sociedade fica até com medo dos doutores, quando a gente deveria explicar que tudo o gira em torno da sociedade, da comida e da liberdade, depende do que estamos fazendo na universidade. O desenvolvimento e a liberdade do país dependem disso.
Estamos caminhando para um atraso irrecuperável. O sistema nacional de ciência e tecnologia foi montado nos anos 1950, com a criação do CNPq e, em seguida, com a Capes. Isso está sendo desmontado. Não existe nenhuma possibilidade de desenvolvimento do país se ele não se desenvolver do ponto de vista industrial. Não existe nenhuma possibilidade de ser potência industrial se você não é uma potência científica. Não tem como desenvolver indústria sem uma base de ciência e tecnologia. E não há ciência sem pesquisa. Esse é o drama que estamos vivendo.
É uma política deliberada de acabar com a possibilidade do país ingressar no futuro. É uma questão muito grave. Só tem mais uma coisa tão grave quanto isso: a destruição da soberania nacional.
E como esse tema está relacionado à soberania do país?
A questão da soberania diz respeito a isso, mas também diz respeito a uma questão ideológica anterior que, na minha opinião, está na origem do novo regime. O bolsonarismo não é a liderança, mas a consequência disso. Os militares meteram na cabeça que é iminente que estamos vivendo um conflito ocidente x oriente, que esse conflito se manifesta no conflito dos EUA , China, Rússia e suas adjacências.
Se esse conflito ocidente-oriente seria inevitável, então temos um partido inevitável, que seria pró-ocidente. Essa é visão militar: seríamos ocidente tanto geograficamente, culturalmente como antropologicamente.
Toda concepção decorre daí: Bolsonaro; a renúncia da política externa e da nossa política da América do Sul; o esvaziamento do Mercosul e do Brics. Nós não termos projeto próprio decorre daí. E a política defesa também, que passa a ser, na verdade, não ter defesa. Esse papel foi terceirizado.
Somos, portanto, uma província subordinada aos interesses estratégico-militares dos EUA. E essa visão externa determina a política interna. Ou seja, como tudo é justificável na Lava Jato porque supostamente estava combatendo a corrupção, tudo é justificado nessa nova visão estratégica porque é possível afastar a ameaça de centro-esquerda do poder porque, o fundamental, é a defesa dos valores do ocidente.
Daí decorre que temos uma indústria nacional subordinada a isso, uma política de exportações subordinada a isso e uma política financeira também. Não é por acaso que essa visão entenda que não é necessário investir. É claro que para essa visão a Petrobras e a Eletrobrás são desnecessárias; um banco como BNDES para o fomento para grandes empresas nacionais é desnecessário.
Eu chego a pensar que há uma lógica nisso tudo. Fala-se muito na loucura de Bolsonaro. Há muito método em tudo isso.
Edição: Aline Carrijo
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia