Fonte: Jota.info
Muito se tem noticiado sobre autuações envolvendo jogadores e técnicos de futebol que optaram por explorar sua imagem por meio de pessoa jurídica. Mas a verdade é que estes não são os únicos profissionais na mira da Receita Federal. Diversos artistas, jornalistas e outros profissionais liberais que prestam serviços de natureza pessoal também estão no centro das atenções do Fisco e muito deles já foram autuados.
O grande embate que se verifica é que os contribuintes, sempre que possível, procuram fazer uso de pessoa jurídica ao prestarem serviços, pois a carga tributária sobre ela incidente é substancialmente menor do que a carga tributária devida pelas pessoas físicas. Em suma, a opção de um profissional liberal pela utilização de uma pessoa jurídica para a prestação de um serviço se deve, na maior parte das vezes, à economia tributária gerada.
A Receita Federal, entretanto, tem se mostrado contrária à adoção dessa estrutura empresária e busca manter sua arrecadação mediante a lavratura de Autos de Infração que reclassificam os rendimentos recebidos pelas empresas, alocando-os à pessoa física dos profissionais liberais. Os referidos Autos de Infração, quando formalizados, cobram valores a título de Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF) com a imposição de pesadas multas, que partem de 75% do valor devido e podem chegar a até 150%, nos casos em que há acusação de fraude ou simulação.
Essa situação foi vivenciada de perto por Ricardo Boechat. Autuado pela Receita Federal sob a acusação de “omissão de rendimentos da prestação de serviços de natureza personalíssima percebidos por pessoa jurídica”, o jornalista se viu compelido a pagar um débito da ordem de R$ 1,5 milhão. O Fisco sustentou que os serviços pessoais e individuais prestados por Boechat são atividades indissociáveis da sua figura e não poderiam ser atribuídos a pessoa jurídica.
Subsidiariamente, defendeu-se que ainda que admitida a exploração de serviços de caráter pessoal por empresas, que isso somente seria possível após o advento da Lei 11.196/2005.
As cobranças feitas pelo Fisco federal referem-se a rendimentos de 2000, 2001 e 2002 recebidos da TV Globo Ltda, Agência o Globo Serviços de Imprensa Ltda e Jornal do Brasil S/A, dentre outros.
Diante da exigência fiscal, Boechat ingressou na Justiça Federal do Rio de Janeiro com uma ação reivindicando o reconhecimento do seu direito de prestar serviços por meio de empresa – assim como se admite com outros profissionais – e pleiteou o consequente cancelamento da cobrança.
O Auto de Infração de IRPF foi cancelado em primeira instância. Na ocasião, o juízo da 30ª Vara da Justiça Federal fluminense considerou que a Lei 9.430/1996, em seu artigo 55 autorizava a tributação de pessoas jurídicas prestadoras de serviços profissionais, e que o artigo 129 da Lei 11.196/2005, apenas ratificou essa possibilidade.
Para o Fisco, a previsão contida na Lei 9.430/1996 autorizava a utilização de pessoas jurídicas apenas para explorar serviços profissionais relativos ao exercício de profissão regulamentada. No caso de Boechat, apesar da atividade de jornalismo ser regulamentada pelo Decreto 83.284/1979, a sociedade por ele criada não era uma sociedade de profissão regulamentada, mas sim uma sociedade simples e pura e, assim, não faria jus ao benefício.
Para que fosse admitido que o jornalista pudesse fazer uso de pessoa jurídica, era preciso que a sociedade por ele constituída fosse composta apenas por jornalistas. Porém, como no caso a sociedade era constituída por profissionais de diferentes atividades, sua sociedade não se enquadraria no permissivo legal e os rendimentos a ela atribuídos deveriam ser tributados na pessoa física de Boechat.
Além disso, defendia a Receita Federal que a norma contida no artigo 129 da Lei 11.196/2005 não seria aplicável ao caso, visto que sua entrada em vigor se deu no curso de 2005 e os fatos em discussão eram anteriores, de 2000, 2001 e 2002.
A Fazenda Nacional, representando os interesses da União e, por consequência, da Receita Federal, levou a discussão ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região que, ao examinar o caso, ratificou o entendimento firmado em primeira instância e manteve o cancelamento da exigência fiscal.
Para o Tribunal, se a legislação admitia a existência de uma sociedade prestadora de serviços profissionais regulamentada, também permitia que uma sociedade simples, como a de Boechat, pudesse prestar serviços de natureza pessoal, devido à semelhança entre elas. Ao examinar o teor da regra contida no artigo 129 da Lei 11.196/2005, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região a classificou como sendo uma norma interpretativa, passível de ser aplicada retroativamente, como autoriza o Código Tributário Nacional.
A discussão então foi levada ao Superior Tribunal de Justiça e, em recente decisão, proferida em dezembro de 2017, o jornalista Ricardo Boechat obteve a confirmação do cancelamento do Auto de Infração que lhe imputava a cobrança de IRPF pela suposta omissão de rendimentos.
A 2ª Turma do Tribunal Superior acabou não entrando no mérito da discussão, pois considerou que o recurso da Fazenda Nacional não preenchia os requisitos formais. Com isso, uma vez mais foi ratificado o cancelamento da exigência fiscal e, consequentemente, reconheceu-se a possibilidade de profissionais liberais prestarem serviços de caráter personalíssimo por meio de pessoas jurídicas.
Esse precedente, agora confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, apesar de não ter se aprofundado na discussão, deve representar um importante divisor de águas para os contribuintes. Trata-se do primeiro caso julgado em definitivo pelo Judiciário no qual se avalia a possibilidade de se explorar direito personalíssimo por meio de pessoa jurídica.
A maior parte das discussões envolvendo a viabilidade de se explorar direito de natureza pessoal por intermédio de empresa hoje se concentra no CARF, onde os contribuintes vêm sofrendo seguidas derrotas.
O Tribunal administrativo caminha na direção de consolidar seu posicionamento pela impossibilidade de se adotar tal estrutura empresarial antes do advento do artigo 129 da Lei 11.196/2005, por considerar que essa norma teria inovado a ordem jurídica e, assim, não poderia ser aplicada retroativamente.
Um caso emblemático em que o CARF adotou esse entendimento restritivo se passou com o ex-tenista Gustavo Kuerten, que viu uma autuação de mais de R$ 30 milhões ser mantida na esfera administrativa.
No entanto, com o posicionamento firmado pelo Judiciário no Caso Boechat, os contribuintes ganham forças e têm suas esperanças redobradas, em especial, Guga, que a despeito da derrota sofrida no CARF agora pode voltar a sonhar com dias melhores e, por que não, com o cancelamento pelo Poder Judiciário da dívida milionária que lhe é cobrada. Agora, nos resta acompanhar os próximos capítulos dessa batalha travada pelo Fisco contra os contribuintes e ver como a Justiça irá se posicionar.