Do CONJUR, Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy:
A passagem dos 50 anos do Código Tributário Nacional sugere que estudemos e comentemos a obra de um de seus principais construtores, Rubens Gomes de Sousa. Registro que ao longo de mais de 20 anos Gomes de Sousa trocou cartas com Aliomar Baleiro, outro entre os construtores do CTN. Nessas preciosas cartas pode se tentar uma arqueologia da concepção de nossa texto central de Direito Tributário. Ao lado do professor Marcos Aurélio Pereira Valadão, da Universidade Católica de Brasília, tenho explorado e estudado essas cartas[1], com o objetivo de mapearmos o pano de fundo intelectual que moveu a concepção do CTN.
A pesquisa em andamento revela-nos inesperadas informações que constituem no centro mesmo da genuína pesquisa histórica em Direito. Desbravamos fontes primárias. Descobre-se que a Rubens Gomes de Sousa foi oferecida uma cadeira no Supremo Tribunal Federal em 1967, e desvenda-se também que nosso tributarista não aceitou o honroso convite. Estávamos na Era Militar. A cadeira oferecida fora a de Cândido Motta Filho, também importante literato e humanista da história cultural brasileira[2].
Naquele contexto histórico delicado, de tentativa de acovardamento do STF, destacaram-se vozes energéticas, que não se deixaram cooptar, por um prato de lentilhas. Refiro-me, nomeadamente, a Hermes Lima, Victor Nunes Leal. Aliomar Baleeiro também foi um bravo. Essa época é melhor entendida com a necessária leitura da autobiografia de Hermes Lima (Travessia)[3], bem como com os estudos José Melo do Amaral Junior (sobre Aliomar Baleeiro)[4] e de Fernando Menezes de Almeida (sobre Victor Nunes Leal)[5], a par do valioso livro de Bruno M. Salama, em livro sobre a desconstrução da responsabilidade limitada do sócio, no exato momento em que explica como apenas os militares tinham condições e força política para aprovarem o CTN[6].
Em carta datada de 25 de setembro de 1967, e dirigida a Aliomar, a quem Gomes de Sousa se referiu como “amigo de tantos anos”, o indicado para o STF revelou que jamais imaginaria eventual distinção. Afirmou se tratar de honra, devida a méritos, que Gomes de Sousa, com muita humildade, não reconhecia em si mesmo. Tendo que decidir rapidamente, declinou do convite, em carta ao então Governador de São Paulo. Gomes de Sousa lembrou que um companheiro de escritório havia comparado a situação com a vivida por Clovis Beviláqua, que também recusou uma cadeira no STF, oferecida pelo Marechal Hermes da Fonseca. Segue a carta:
“25 de setembro de 1967. Ministro Aliomar Baleeiro, Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF. Meu caro Aliomar: Você, que é meu amigo de tantos anos, bem sabe que jamais me ocorreria imaginar que uma indicação para o Supremo Tribunal me fosse oferecida; Essa é uma honra a que só se pode aspirar em função de méritos, que Você também sabe que não reconheço em mim mesmo. De modo que eu nunca havia pensado no assunto, a não ser como aquela aspiração, que todo jurista naturalmente alimenta, de um dia merecer o mais alto galardão que o Direito pode oferecer: mas, mesmo isso nunca passara, para mim, do plano das imaginações delirantes. Pois, como Você sabe, a oferta me foi feita, em circunstâncias que me obrigaram a uma decisão rápida, tendo inclusive de vencer o aturdimento de quem vê, de repente, materializar-se algo que antes só existira no reino dos sonhos. E foi então que, confrontado com o problema em concreto, me dei conta de que não poderia assumir um dever sem faltar a outro. Junto a esta carta Você encontrará cópia da que escrevi ao Governador: não preciso dizer que as razões nela declaradas são absolutamente verdadeiras e resultam de uma convicção honesta, que para outros poderá estar errada, mas que para mim é a minha verdade. Um dos meus companheiros de escritório comparou essa carta à que Clóvis Bevilaqua escreveu ao Marechal Hermes da Fonseca em circunstâncias idênticas. Também ele declinou por convicção de que fora Tribunal poderia melhor servir (…).”
Para o então governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, Gomes de Sousa agradeceu a lembrança de seu nome e justificou a recusa por conta do compromisso que assumira, com o CTN, no sentido de divulga-lo, explorá-lo e promove-lo. A reforma tributária em andamento, entende-se da carta, tomava seu tempo, energia e preocupações. Gomes de Sousa identificava-se em uma cruzada, que lhe exigia muito, na luta contra os ataques que o código então sofria. É a sina dos autores de códigos o alvo da crítica e da incompreensão, situação que o direito brasileiro é prenhe de exemplos, todos de triste memória. Essa sina talvez tivera início com Teixeira de Freitas. Segue a carta de Gomes de Sousa a Abreu Sodré:
“25 de setembro de 1967. Senhor Governador: Venho agradecer a Vossa Excelência a consulta, transmitida pelo meu amigo e colega Carlos Eduardo Camargo Aranha, quanto à indicação do meu nome para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal com a aposentadoria do Ministro Cândido Motta Filho. Ao mesmo tempo, peço licença para reiterar diretamente a Vossa Excelência às razões que me levaram a declinar do honroso convite e a pedir dispensa do serviço que ele me solicitava. Devo dizer que a notícia, embora prematura e incorreta, aparecida em jornais desta Capital e do Rio de Janeiro, teve para mim a utilidade de evitar que a consulta, quando efetivada, me apanhasse inteiramente de surpresa. Pude, assim, meditar previamente sobre o assunto e responder com a minha decisão já amadurecida e com plena convicção pessoal dos motivos que ditaram a minha resposta. A reforma tributária, implantada pela Emenda Constitucional nº. 18, implementada pelo Código Tributário Nacional, e consagrada, posto que com modificações, pela Constituição Federal, ainda não é um assunto encerrado. Continua ela a sofrer ataques, tanto no terreno político, que não me compete, como no científico ou técnico; subsistem as tendências de modificá-las, em aspectos não apenas de detalhe, mas estruturais; e estudos se processam nesse sentido, em diferentes planos e, presumivelmente, inspirados em distintas tendências e motivações. Assim, a minha responsabilidade pela reforma tributária, quer perante o país, quer para consigo mesmo, não está definitivamente saldada. Subsistem ainda trabalhos que me competem nesse assunto, seja para fundamentar o que foi feito, seja para comentar o que se venha a fazer. Por isso, não me é possível assumir uma posição que, pela sua própria magnitude, me retiraria definitivamente do campo de uma luta ainda não decidida. Não quero incidir no erro de personalizar minha posição quanto à reforma tributária, ou na vaidade pueril de me identificar com ela, inclusive porque estaria esquecendo que os outros mais competentes que eu, também dela participam. Todavia, por circunstâncias que penso não ter contribuído para criar, mas que escapam ao meu controle, sempre que se menciona a reforma tributária o meu nome é o primeiro a ser com ela associado. E justamente porque se trata de uma obra coletiva, a minha responsabilidade está engajada também para com os que nela trabalharam comigo. Estas mesmas razões assumem ainda uma feição mais pessoal, mas que acredito seja legítima. Para mim, a reforma tributária começou em 1953: nesse ano, elaborei o Anteprojeto de que resultou o primitivo Projeto de Código Tributário Nacional, que no ano seguinte foi enviado ao Congresso. Era ainda um trabalho parcial, porque preso à Constituição de 1946, e que somente em 1965 pode ser retomado e posto em seu âmbito atual: mas ele já se encontrava o germe do que afinal foi feito. Assim, a reforma tributária é um trabalho que me ocupa há, 14 anos, que vão dos 40 aos 54 anos da minha idade. Esse período é, na vida de um homem de estudo e de trabalho, o mais significativo em termos de maturidade de pensamento, de capacidade de produção, de cristalização de ideias e de refinamento de convicções. A ele segue-se, fatalmente, a estabilização e, depois, o declínio. Acredito, portanto, que se algo de útil me será dado produzir e deixar, esse algo será resultante do esforço que até agora consagrei à reforma tributária. Esta é, pois, mais uma razão que leva a crer que devo prosseguir nesse esforço e a ele reservar o que ainda me resta de capacidade de trabalho e de possibilidade de dedicação. Para quem teve toda uma vida de trabalho no Direito, e nessa condição atingiu alguma modesta capacidade, o acesso ao mais alto posto a que pode aspirar um jurista representa o coroamento de uma carreira. Por estar convicto disso é que tenho a certeza de que, ao declinar do convite com que me distinguiu o serviço cuja solicitação é uma honra. Ao contrário disso, estou renunciando a essa honra para continuar prestando o serviço a que até agora dediquei o melhor dos meus esforços dentro dos limites da minha capacidade. Expresso ao Governo do Estado, na pessoa de Vossa Excelência, a minha imensa gratidão pela lembrança do meu nome, e formulo a Vossa Excelência os protestos de meu profundo respeito.”
A recusa a uma cadeira no STF não é um fato corriqueiro. Essa passagem na vida de Rubens Gomes de Sousa (que me parece também declinara da carreira diplomática) talvez seria melhor explicada por aqueles que com ele conviveram. Como observador distante, no tempo, no espaço e na cultura, e admirador de sua obra e trajetória, resta-me apenas conjecturar e especular. Não se pode negar sua seriedade de propósitos, com os compromissos assumidos e vividos com o CTN, que é obra para a qual dedicou boa parte de suas energias.
A leitura da carta revela um homem superior, de superlativa coragem moral e de incomensurável rigor intelectual. Rubens Gomes de Sousa é um gigante do Direito brasileiro. Mas não se pode descartar que os tempos eram sombrios, que o STF era recorrentemente ameaçado, diminuído e amordaçado e que Rubens Gomes de Sousa era antes e mais do que tudo, um homem de ideais. Uma espécie em extinção.
[1] Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Fundação Getulio Vargas, especialmente no arquivo referente a Aliomar Baleeiro.
[2] Conferir MOTA FILHO, Cândido, Contagem Regressiva- Memórias, Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
[4] AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do, Coleção Memória Jurisprudencial- Aliomar Baleeiro, Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2006.