BARÉ: POVO DO RIO

Por  Ribamar Bessa:

“Manaus, terra dos Barés / dos igarapés / rios colossais”
Hino a Manaus – Letra de Madre Dias.
Talvez a freira que escreveu o hino a Manaus, Madre Dias, só tenha mencionado os Barés para poder rimar com igarapés. Os Barés pareciam tão irreais quanto “tuas róseas madrugadas, de baunilhas perfumadas” – características atribuídas à cidade no canto que minha geração aprendeu na escola. O Hymno Municipal de Manáos também exalta “a cidade dos nobres Barés”., Nobres, mas varridos do mapa. Eles foram apagados com tanta eficiência, de forma tão acabada, que não figuram no livro de Darcy Ribeiro – Os Índios e a Civilização – sequer como “índios extintos’.
Oficialmente, não havia mais nenhum Baré em território brasileiro. Só figuravam como nome de uma emissora de rádio, que manteve nos anos 1950 uma casa de shows – a  Maloca dos Barés – sediada na zona portuária à beira do rio Negro, próxima à rua do mesmo nome.
No entanto, os Baré continuavam firmes e fortes, viviam camuflados como “cabocos”, ao longo do Rio Xiê, no alto curso do Rio Negro e na região do Médio Rio Negro, submetidos a um trabalho semiescravo na exploração de produtos da floresta. Hoje, os Baré, “ressuscitados”, são mais de 11 pessoas no Brasil e cerca de 3 mil na Venezuela.
Quem é Baré
– Professor, o senhor pode me dizer quem sou eu? A Funai está dizendo que eu sou Baré, mas eu não sou Baré, eu sou Baré?
A angustiante pergunta foi feita por um aluno do Curso de Formação de Professores Indígenas Residentes em Manaus organizado, em 2006, pela Secretaria Municipal de Educação. Brinquei:
– Quem sou eu para dizer quem é você?
Foi aí que ele contou sua vida. Viveu até os dois anos no Rio Uaupés em uma comunidade do pai, que é Tukano, junto com a mãe, que é Karapanã. Lá, convivendo com parentes, balbuciou as primeiras palavras em tukano, mas ouviu canções de ninar em karapanã, ambas da família linguística Tukano Oriental. Logo, o pai foi contratado para trabalhar num sítio distante dali, na área rural de Manaus, onde se fala português. Dentro de casa, porém, a comunicação era feita exclusivamente em nheengatu, língua de comunicação interétnica que passou, assim, a ser sua primeira língua.
Por outro lado, os Baré, que haviam adquirido o nheengatu e se tornaram bilíngues, passadas algumas gerações deixaram de falar baré – língua Arawak – e  ficaram apenas com o nheengatu – de base Tupi, que se tornou língua de identidade deles e hoje coexiste em bilinguismo com o português. Considerando que falantes de outras línguas passaram por processo similar de deslocamento linguístico, muitos foram identificados como Baré pela Funai. Agora, o professor tukano-karapanã-baré, competente também em português, quer saber como relacionar essas línguas com sua identidade.
Essa questão é discutida no livro Baré: Povo do Rio organizado por Marina Herrero e Ulysses Fernandes, lançado nesta quarta-feira (31) no Sesc Pompeia, em São Paulo, em evento precedido pela exibição de documentário homônimo dirigido por Tatiana Toffoli e por uma roda de conversa com dois barés – Braz França e Marivelton Barroso, além do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e deste locutor que vos fala. Depois, os autores autografaram livros na presença de Isaias Baniwa, da Foirn e Sandra Gomes, vereadora de Santa Isabel. O livro será lançado em Manaus e em São Gabriel e o filme estreia dia 19/04 no Sesc/TV.
Cemitério de línguas  
Os autores dos textos e das fotos são pesquisadores de várias universidades e de distintos campos do saber, além de dois líderes baré, intelectuais que construíram seus conhecimentos nas assembleias indígenas e na luta por terra, educação, saúde, cultura. Nenhum dos dois fala baré, língua banida do território brasileiro e usada apenas por alguns velhos em San Carlos, na Venezuela. Ambos são bilingues nheengatu-português, conscientes de que os últimos falantes de baré estão sepultados em Manaus, um cemitério de línguas indígenas.
– Hoje, quinhentos anos depois, ainda lembramo-nos das tristes histórias contadas por nossos avós – escreve Braz França, líder histórico do Rio Negro. Ele nos oferece narrativas míticas, ensinamentos e rituais sagrados “que não possuem comprovação registrada em livros ou cartórios“, mas são gravados na memória e repassados de pai para filho. Está tudo lá: a origem e o destino do povo Baré, Jurupari e suas flautas, Mira-Boia, Poronominaré, o ritual de iniciação Cariamã e o Dabacuri. Uma prova da eficácia desse mecanismo de transmissão oral que atravessou três línguas é o jovem baré Marivelton Barroso, de 23 anos – o outro autor – que nos fala de encantados, de danças e rituais, da mandioca domesticada e da culinária que se firmam como componentes identitários.
O leitor pode cruzar tais relatos não só com fotos de Pisco del Gaiso que constituem documentos belos e informativos, mas também com outros textos elaborados a partir de pesquisas acadêmicas, como o do antropólogo Paulo Maia que, após longa convivência em comunidades da região, etnografou a cultura baré, descreveu rituais, registrou narrativas, além de mergulhar na documentação sobre a história do Rio Negro.
Maia constata “o dilema típico da região rio-negrina – a identificação entre povo e língua indígena” – para o qual Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, chama a atenção: os índios que agora “voltam a ser índios” reconquistam seu devir-índio, “reaprendem aquilo que já não lhes era mais ensinado por seus ancestrais” e “se lembram do que foi apagado da história, ligando os pontos tenuemente subsistentes na memória familiar, local, coletiva”.
Eu sou baré?
As escavações no sambaqui de palavras estão aqui acompanhadas das pesquisas arqueológicas realizadas no Rio Negro, que são poucas – como adverte Eduardo Góes, num balanço do que foi feito até hoje. Ele aponta lacunas e avalia “o imenso potencial de informações históricas que a arqueologia dessa região ainda trará“. Apesar de incipientes, as evidências arqueológicas permitem referendar o “dinamismo silencioso” dos Baré “que se refazem a cada dia, quietamente, nas aldeias, vilas e cidades do Rio Negro”.
A identidade baré assediada pela invasão religiosa e tecnológica é vista ainda com o olhar acurado do ensaísta argentino Guillermo David que observou, sob outro ângulo, o cotidiano dos Baré com quem conviveu. Nada lhe escapou. Conversou com velhos. Um deles, indagado por suas lembranças da língua baré falada pela mãe, mencionou palavras castelhanas aprendidas nos balatais da Venezuela. Guillermo registrou ainda a ausência de preconceitos dos Baré com relação à tecnologia e o uso que fazem dela como ferramenta eficaz no processo de etnogênese. Assistiu com eles, em plena floresta, vários programas de tv e os jogos classificatórios da Copa do Mundo de 2014, com temor que se revelou infundado do “que prometia ser um momento incômodo ao menos para mim, argentino”.
Finalmente, Beto Ricardo que testemunhou o nascimento da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e a luta pela terra, dá depoimento sobre o movimento indígena e suas relações com diferentes instituições militares e religiosas.

Eu não sou Baré, eu sou Baré? É disso que trata o livro, cujos autores devolvem o uso do carimbo identitário aos próprios Baré.

P.S. Reproduzimos aqui parte do texto que está na orelha do livro.