Por Ribamar Bessa:
Com este quadro político que nos mata de vergonha, a autoestima dos brasileiros está lá no pé, anunciando que o Brasil vem descendo a ladeira. A bandidagem, que ocupa o terreno da política, baniu dali quem não reza pela mesma cartilha, relembrando a nossa condição de filhos de portugueses degredados que violentaram e até assassinaram as índias e negras que nos pariram. Essa pesada herança histórica é uma ignomínia. Mas, houve tempo em que um reles caroço de feijão ou uma simples bola ajudavam a cimentar o orgulho nacional como mostra a história de alguns exilados que aqui passo a vos narrar.
A partir do golpe de 1964, muitos brasileiros perseguidos pela ditadura se refugiaram no Uruguai e no Chile. No Peru, em 1970, ainda éramos poucos: o ex-deputado David Lerer; o engenheiro Héber Maranhão da Rede Ferroviária Federal; os estudantes José Prates da UnB e Lídia Lucaski do Paraná; o casal de titiriteiros Euclides e Adair do Teatro de Bonecos Dadá, este locutor que vos fala e Severino Manoel do Nascimento, cabo do Exército. Nos anos seguintes chegariam os estudantes Felipe Lindoso e Maria José Silveira e os irmãos Egler – Paulo e Marcos. De outros países vieram antigos exilados: Neiva Moreira, o jornalista mineiro Guy de Almeida e o casal Darcy e Berta Ribeiro.
Severino, cabra da peste, era o único com asilo formalmente concedido, em janeiro de 1970, pelo governo Velasco. De origem rural, pretendia trocar Lima por Iquitos, onde montaria pequena granja de galinha para a qual já contava até com sócio peruano. Peregrinava pelos bancos mendigando um empréstimo, sem sucesso, pois os supostos subgerentes com quem conversava nada decidiam diante da falta de qualquer garantia a oferecer. Severino nos visitava regularmente na garagem alugada de uma casa em Magdalena del Mar, onde morávamos o casal Dada, o filho André e eu.
Água no feijão
Nessa garagem, num pequeno fogão de duas bocas, cozinhávamos diariamente o feijão canário de grão amarelado cultivado em Piura, norte do Peru, e comprado numa birosca local com os centavos arrecadados nos espetáculos de bonecos. Comíamos, num dia, feijão com arroz; no outro, arroz com feijão. Eis que, na hora do almoço, muitas vezes chegava o nosso Severino trazendo histórias mirabolantes dos trâmites e das conversas mantidas com obscuros gerentes que prometiam mundos, mas nunca fundos. Adair, que preventivamente já havia botado água no feijão, cortava o papo do tagarela:
– Almoça com a gente, Severino?
Ele respondia com um discurso delirante do tamanho de sua fome:
– Obrigado. Acabo de comer. O gerente do Banco Agrícola me convidou lá no restaurante do Hotel Crillon. Um banquetaço! De entrada, cebiche, depois taco-taco com costela de cabrito e aji de galinha. A sobremesa, um suspiro de limenha com manjar branco. Menina, como comi! Enchi o bandulho num sabe? Fiquei empanzinado.
Severino não deixava por menos, listava tudo o que gostaria de comer e ainda imprimia mais realismo à cena palitando os dentes virgens. A gente salivava diante da descrição do menu fantasioso que mudava a cada semana. Só não mudava a sua fome, visível até para o André de apenas três anos. Vendo que ele estava azul de fome, Adair insistia:
– Faz só uma boquinha, rapaz. Anda. Prova o nosso feijão.
– É brasileiro? – perguntava Severino.
Na primeira vez, quando Adair respondeu com sinceridade que era de Piura, ele recusou:
– Se fosse brasileiro…
O recado estava dado. Nas vezes seguintes, quando perguntada sobre a origem do feijão, Adair dizia, solidária:
– Esse aqui? Brasileiríssimo. Feijão canarinho como a seleção brasileira. A mãe mandou do Paraná.
– Ah, se é brasileiro, então dou uma beliscadinha…
Aí Severino comia vorazmente um prato de peão, jurando que repetiria se fosse feijão-de-corda produzido em Orós (CE), na várzea do rio Jaguaribe. Como rejeitar algo do Brasil, você me entende? Tinha de prestigiar o que era nosso, mormente durante a Copa do Mundo no México, cujos jogos assistimos pela tv, inclusive e eliminação do Peru pela seleção canarinho para a qual Severino elaborou explicação nacionalisteira: “Uma seleção é composta por 12 pessoas: 11 jogadores e 1 técnico. O Peru perdeu porque só tinha um brasileiro, que era o técnico Didi”.
Vida de Lazarillo
Lembrei do Severino ao reler o romance picaresco “La vida de Lazarillo de Tormes”, de autor espanhol anônimo do séc. XVI, proibido pela Inquisição. É um prato para discutir solidariedade, hipocrisia, honra, dignidade humana. Narra a trajetória de vida miserável do personagem numa Espanha em crise, passando por transformações econômicas e sociais com todas suas implicações ideológicas. Lazarillo, um adolescente, é entregue pela mãe a diferentes amos para servi-los. O primeiro é um cego avarento, o segundo um clérigo que esconde a comida, o terceiro é um escudeiro com pose de nobre, mas falido.
Apesar de sua aparência galharda de fidalgo, o escudeiro bem paramentado e com um discurso delirante de riquezas virtuais não só não tem onde cair morto, como está socialmente tolhido, em nome daquilo “que chamam de honra”, para sair em busca do sustento. Um escudeiro não pode mendigar. Lazarillo compreende que terá que sair em busca de comida e vai ao mercado, onde as mulheres, com pena, lhe dão as sobras de pão, unha de vaca e tripas.
De volta para casa, acontecem algumas cenas antológicas, onde a compaixão se manifesta. O amo jura que já havia almoçado muito bem, mas ao ver Lazarillo saborear com tanto gosto, exclama: “O teu entusiasmo ao comer desperta o apetite de qualquer um“. Com o nariz empinado, indaga se aquele resto de pão tinha sido amassado por mãos limpas. Convidado, então, a compartilhar a buchada de vísceras, devora com avidez chupando até o último osso. Com a honra por um fio, mas sem perder a compostura jamais, saboreia a buchada e exclama:
– Digo-te que é a melhor comida do mundo, não existe faisão que tenha tanto sabor.
– É que a unha de vaca está bem cozinhada e temperada – concorda Lazarillo para salvar as aparências.
Éramos muitos lazarillos no exílio. O que aconteceu depois com os exilados de 1970 e como trabalham a brasilidade? Como anda aquele orgulho hoje abalado até no futebol, com os 7 x 1 cravados em nosso coração pela Alemanha, 12 alemães contra 12 brasileiros? O que foi feito dos sonhos e das utopias de um mundo melhor no qual cabia o país com toda a sua diversidade? Com o fim da ditadura, todos voltaram ao Brasil.
Flor de la canela
O que sobrou dos exilados está por ai, uns ainda sonhando os pesadelos desse Brasil despedaçado, mas sem abandonar as trincheiras; outros mais pragmáticos em outras frentes de lutas políticas e há ainda os que atravessaram a ponte. Taí o Ferreira Gullar que não me deixa mentir.
De Severino, não tenho qualquer notícia, desconheço seu destino político, não sei se está comendo o feijão importado da Califórnia como se fosse brasileiro ou se conseguiu galinhas em Iquitos.
Héber Maranhão deixou o Peru, foi pra Costa Rica e depois Nicarágua, com a anistia retornou ao Rio e entrou no PDT, com cargo no governo Brizola. Faleceu num acidente de trânsito. Seu filho Jerônimo, também engenheiro diplomado em Manágua, vive em Manaus e concorreu para prefeito nas eleições de 2002 pelo PMN, seja lá o que isso signifique. Obteve 0,64% dos votos.
Faleceram também Adair, Neiva, Berta e Darcy Ribeiro. Quem está vivo, aliás vivíssimo, é José Prates, três vezes prefeito de Salinas (MG), município de 41 mil habitantes. A primeira pelo PT (2004), a reeleição pelo PTB (2008) e agora, em 2016, pelo PHS, seja lá o que isso signifique, depois de ser derrotado em 2014 para deputado federal. Puxou sucessivamente o saco do Lula, da Dilma e do Aécio de quem coordenou a campanha nas últimas eleições presidenciais. Teve seus bens bloqueados e enfrenta ações de improbidade por ter construído banheiros sem pia e sem caixa d´água na zona rural e por obras na ampliação do cemitério e do Museu da Cachaça.
David Lerer, às vésperas dos 80 anos, se aposentou, mas continua derramando seu charme e simpatia em São Sebastião, no litoral paulista, onde vive há 15 anos, mantendo-se fiel à sua trajetória de ex-médico do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Foi candidato a deputado federal (PDT), mas não se elegeu. Seus artigos semanais na revista OIGA chefiada por Paco Igartua são lembrados ainda por alguns peruanos da velha guarda.
Lídia Lucaski, antropóloga e ambientalista, fundou a AMAR – Associação de Defesa do Meio Ambiente de Araucária (PR), que move ações contra os crimes ambientais, os agrotóxicos e as fábricas que envenenam a região.
O engenheiro Paulo Egler, o Paulão, atuou no Ministério da Ciência e Tecnologia implementando políticas na área ambiental. Seu irmão Marcão, engenheiro químico, é diretor técnico de empresa de consultoria. Maria José Silveira, escritora, acaba de lançar “Felizes Poucos, onze contos e um curinga” sobre a militância, a violência, o exílio, a esperança. Continua na luta com Felipe Lindoso, antropólogo, tradutor e editor, autor de um livro sobre a leitura no Brasil.
Euclides Coelho de Souza, roraimense, viúvo, 81 anos, reside em Curitiba, mantendo o entusiasmo juvenil e o humor sacana de titiriteiro. Com ele falo regularmente por telefone para trocar figurinhas, rir do mundo, da vida e da morte, atualizar as fofocas políticas e lembrar aqueles tempos em que Lucha Reyes, a morena de ouro do Peru, cantava La Flor de la Canela na Peña Karamanduka e recolhia a brisa do rio, andando pela vereda que se estremecia ao ritmo de seus requebros. O Peru inteiro chorou sua morte, em 1973, cujo enterro presenciamos. Na passagem de seu caixão, Euclides despejou no chão uma dose de pizco: “É pro santo cuidar dela”.