Uma análise cuidadosa dos pontos que deveriam ser colocados na discussão sobre uma repactuação do SUS (Sistema Único de Saúde) não nos permite fugir de um ponto essencial: a gestão da rede pública. A União, Estados e municípios adotaram, desde a criação do sistema, diferentes modelos de administração que afetam diretamente o atendimento prestado à população, sem que houvesse uma discussão profunda sobre os parâmetros ideais para o serviço público.
Trata-se de uma discussão que tem de ser feita antes mesmo de colocar em debate novas formas de financiamento para a saúde pública, porque implica em decidirmos a destinação final do orçamento do SUS —muitas vezes, pode tratar-se de uma transferência direta para o setor privado, uma forma disfarçada de privatização alimentada com dinheiro do Estado.
De um lado, estão os defensores do serviço público tradicional, em que os equipamentos da rede de saúde são totalmente administrados pelas prefeituras, governos estaduais ou mesmo pelo governo federal. De outro lado, estão modelos que descentralizam a gestão e entregam a administração da rede pública para associações e entidades assistenciais.
Há ainda um modelo híbrido em que uma fundação estatal de direito privado é criada para gerir o sistema público ou parte dele; a fundação é proveniente do Estado, mas é independente de parte da legislação apontada como culpada por demoras no atendimento de demandas administrativas.
Ambos os modelos têm prós e contras, mas são especialmente polêmicos no segundo caso: movimentos contrários à privatização da saúde apontam graves defeitos no sistema de parceria com entidades privadas ou criação de fundações, como o distanciamento do Estado de decisões estratégicas, o fechamento do debate sobre a gestão da saúde à sociedade, ausência de mecanismos de fiscalização e dificuldade em manter e qualificar servidores públicos, por conta da alta rotatividade permitida nas contratações pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
A forma obscura com que algumas dessas parcerias ocorrem permite ainda que os braços filantrópicos de grandes grupos privados de saúde se apossem da administração de hospitais públicos, de forma a tornar incertos os limites entre os orçamentos de suas unidades e passem a reforçar o caixa com os repasses do SUS, enquanto não necessariamente prestando um serviço de alta qualidade à população que depende da saúde pública.
Independentemente do modelo de administração, são questões a serem debatidas com atenção e seriedade: é imperativo que o papel do Estado seja proeminente na gestão da rede de saúde, de forma a traçar as linhas estratégicas de investimento na expansão e melhoria dos serviços. Assim como é sua obrigação conduzir programas permanentes de qualificação e valorização dos profissionais da saúde, impedindo a “fuga” dos trabalhadores mais gabaritados para o setor privado e melhorando o atendimento recebido pela população.
Será somente com esforço do Estado que medidas importantes como o Cartão SUS poderão sair do papel: um sistema que integre a saúde pública de todo o país, qualquer que seja o modelo de gestão, permitindo a visualização rápida do histórico de um paciente em todo hospital do Brasil em que é atendido. Um aglomerado desconexo de entidades privadas espalhadas pelos Estados não é capaz para fazer os avanços necessários nesse sentido.
São críticas sérias, mas que não são inerentes aos sistemas: tratam-se de distorções que, por falta de regulamentação, consomem dinheiro público destinado à saúde da população mais carente sem garantir os melhores resultados. A repactuação do SUS tem de cobrir esses temas, de forma a garantir à população a certeza de que a rede pública será, de fato, pública. Isso só será possível a partir de um amplo debate com a sociedade, cujos resultados sejam oficializados em lei. A ver.
José Dirceu, 64, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT