Mesmo depois de morto, Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, continua aprontando. É que, nos anos 1970, quando vivo – vivíssimo aliás – ele doou aos seus parentes, amigos, afilhados e xerimbabos as terras dos Pataxó, demarcadas em 1938. Os índios nunca aceitaram o esbulho e recorreram, numa luta que dura mais de 25 anos. […]
Mesmo depois de morto, Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, continua aprontando. É que, nos anos 1970, quando vivo – vivíssimo aliás – ele doou aos seus parentes, amigos, afilhados e xerimbabos as terras dos Pataxó, demarcadas em 1938. Os índios nunca aceitaram o esbulho e recorreram, numa luta que dura mais de 25 anos. Agora, está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento da nulidade dos títulos de terra dados aos fazendeiros em ação impetrada pela Funai, em nome dos índios. Valei-nos São Ayres Britto!
A comunidade virtual Literatura Indígena, moderada pela escritora indígena Eliane Potiguara, entrou pra valer nessa briga, com petições, denúncias e informações proporcionadas por Liana Utinguassu, Juvenal Payaya e outros. Eles lembram o que aconteceu com o índio Galdino Jesus dos Santos, que teve seu corpo incendiado por cinco jovens da classe média de Brasília na madrugada do dia 20 de abril de 1997, quando buscava apoio para recuperar o território tradicional de seu povo – a Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, no sul da Bahia.
Com Galdino, já são 30 os Pataxó Hã-Hã-Hãe assassinados na luta pela retomada de suas terras. Os índios estão fortemente documentados em seus direitos, como comprovam os documentos da 4ª Inspetoria Regional e dos Postos Indígenas Caramuru-Paraguaçu, que o Museu do Índio começou a recuperar a partir de 1976, havendo publicado em 2002 um catálogo intitulado: Povos Indigenas no Sul da Bahia. Posto Indígena Carumuru-Paraguaçu (1910-1967).
Condenados ao esquecimento e ao silêncio, muitos índios do sul da Bahia permaneceram invisíveis nos arquivos do SPI. Eram lembrados apenas por seus filhos e netos, em fragmentos dispersos da tradição oral. Mas para a sociedade nacional, continuavam desconhecidos, calados, à margem da história. Não se sabia quem eram, o que pensaram e o que fizeram no período em que viveram, entre 1910 e 1967.
Eram índios emudecidos, até que uma equipe do Serviço de Estudos e Pesquisas do Museu do Índio leu, analisou, selecionou e fichou o conjunto documental, organizando-o cronologicamente e fazendo uma descrição do seu conteúdo, naquilo que ele tem de essencial. Ai, então, esses índios, localizados e identificados, emergiram dos documentos, com nome próprio e, algumas vezes, até sobrenome e apelido.
Os índios que aparecem na documentação desse catálogo não só passaram a existir, como também adquiriram voz. Eles falam e, algumas vezes, escrevem. E quando escrevem, reclamam, protestam, argumentam, registram as alianças feitas, desfeitas e refeitas, na luta pela terra e pela identidade. É possível ouvir o que dizem, recuperando suas palavras, registradas na documentação oficial inventariada.
Os discursos atravessam o tempo, chegando até nós por dois caminhos: pela via do relato oral, recolhido e transcrito por funcionários do aparelho de Estado e, sobretudo, pela via escrita, através de bilhetes, cartas, recibos, requerimentos, ofícios, muitas vezes redigidos de próprio punho.
Afinal, o que é que dizem os índios nesses documentos? Eles protestam contra a invasão de suas terras por arrendatários, fazendeiros e jagunços; reclamam das perseguições, violências, ameaças e arbitrariedades; denunciam a ação de pistoleiros, a queima de suas roças e o envenenamento da água de seus poços; relatam e descrevem as condições das posses; passam recibos de vendas de benfeitorias; requerem e apresentam as mais diversas solicitações, algumas bastante prosaicas, mas carregadas de significados.
Os documentos arquivados no Posto Indígena, produzidos pelos índios do sul da Bahia estão escritos em português. A simples leitura do inventário é suficiente para evidenciar que a documentação contém um corpo de informações de interesse para os linguistas e, especialmente, como ferramenta de luta, capaz de acabar com qualquer dúvida relacionada ao direito dos Pataxó à terra.
A voz do índio nos documentos sugere, também, considerações de ordem histórica, pois a correspondência escrita, dirigida quase sempre ao chefe do posto ou ao inspetor regional, tinha o objetivo explícito de cobrar providências da agência estatal para a solução de algum problema ou conflito, em geral, de natureza fundiária. Alguns ofícios, no entanto, circularam por instâncias superiores, percorreram corredores de ministérios, chegando até mesmo à presidência da República.
É o caso, já nos anos 60, em plena ditadura militar, dos índios que continuaram reivindicando. Um dos documentos registra a “reclamação da índia Delzuita Santana Souza dirigida ao presidente da República”, na época o marechal Castelo Branco, solicitando providências “por crime de esbulho de suas terras sem que houvesse atitude saneadora por parte do SPI” (Registro 2031).
A leitura dos documentos fornece elementos de extraordinária riqueza, que permitem repensar o papel do índio como espectador passivo da história, imagem lamentavelmente ainda bastante difusa na sociedade brasileira. A documentação inventariada vai revelando, aqui e ali, que os índios do sul da Bahia não contemplaram, de braços cruzados, a expropriação de suas terras, mas resistiram, com variadas formas de luta, procurando um lugar na história, como agentes de seu próprio destino. Agora, cabe ao STF fazer justiça, anulando a falcatrua do Toninho Malvadeza.