“O que tipifica uma atividade como educativa é a sua natureza e não a pessoa ou a entidade que a realiza”. (Art. 1º da Lei Geral da Educação do Peru.1972)
– Por que teu bloco tem o nome irreverente de Fiofó Em Chamas? – perguntei a um grande amigo. Ele disse que este nome competiu com “Tou com o cru pegando fogo”, mas justificou a escolha com a aula de história, que resumo a seguir.
O sambódromo e as ruas constituem um lugar privilegiado de educação. Os enredos são filhos legítimos da sabedoria popular casada com o saber acadêmico. Os carnavalescos, com um pé lá e outro cá, fazem a síntese intercultural com imagens, performances, fantasias e alegorias que informam e conscientizam. Mas o caráter educativo não termina aí. Depois de ampliados pela mídia e redes sociais, o samba-enredo, levado pela juventude, invade a sala de aula. Torna-se ferramenta do professor, que complementa e até questiona o livro didático. O currículo samba.
É assim que o carnaval alfabetiza no sentido que lhe dá Paulo Freire, homenageado pela Águia de Ouro, campeã do carnaval de São Paulo. As arquibancadas gritavam “Viva Paulo Freire! cantando em coro o samba enredo “O poder do saber”. Os terraplanistas energúmenos expulsaram do MEC o patrono brasileiro da educação? Ele dá a volta por cima, ganha as ruas e de lá retorna à sala de aula de onde se tentou bani-lo, legitimando o seu lugar aqui e em outros países. A terra é mesmo redonda.
O x do problema
Com Darcy Ribeiro, Paulo Freire foi, no exílio, o grande inspirador da Reforma Educativa Peruana de 1972. A lei reconheceu, em seu artigo primeiro, que a educação acontece também fora da sala de aula, dependendo da natureza da atividade. A gente aprende em todo momento e em qualquer lugar. Contraria assim a visão cartorial de que só adquire o saber quem frequenta escola e tem diploma. No Brasil, muita gente foi “educada na roda de bamba e diplomada na escola de samba”, com Aracy de Almeida cantando “O X do problema”, composto para ela, em 1936, por Noel Rosa.
Ficamos assim combinados: com o carnaval se aprende a ler o mundo. Os regimes autoritários perceberam isso e tentaram controlar a leitura em seu proveito. A ditadura Vargas distribuiu, em 1935, verbas públicas às agremiações exigindo que os enredos exaltassem os heróis inventados pela história oficial. Tratava-se de privilegiar ações de um único indivíduo, colocado como estátua em um pedestal, numa visão rasa da “história sem massa”, que oculta a participação popular no processo de transformação social.
De lá para cá, o carnaval alternou momentos de crítica social e de reflexão política com a alienação. No governo do general Médici – “Brasil: ame-o ou deixe-o” – a Mangueira não deixou de homenagear a criação dos Correios, com o enredo “Modernos Bandeirantes”. A Beija-Flor elogiou os militares com o tema “Educação para o desenvolvimento” na época do acordo MEC-USAID que propunha o ensino pago nas universidades. O resultado foi o samba do crioulo doido na gozação do Stanislaw Ponte Preta, no qual “Tiradentes queria ser dono do mundo e elegeu-se D. Pedro II”.
Nos regimes democráticos, foi diferente. Na era JK, a Salgueiro cantou, em 1957, “Navio Negreiro”, abordando pela primeira vez na avenida o tráfico de escravos, que não era tratado adequadamente nas salas de aula. Mas na ditadura, em 1967, quando saiu com “A História da Liberdade no Brasil”, seus ensaios foram monitorados por policiais do DOPS. A repressão e a censura levaram a Unidos de Lucas a compor, em 1968, o samba enredo “Sublime Pergaminho” que exaltava a Princesa Isabel, e anunciava versão fajuta do fato histórico no refrão repetido à saciedade:
E de repente,
Uma lei surgiu (bis),
E os filhos dos escravos,
Não seriam mais escravos,
No Brasil.
Faísca de esperança
A ideia era essa mesma: os escravizados não lutaram, não foram agentes da história, a coisa surgiu assim, de repente, da canetada de ouro de uma princesa – não existia ainda a Bic. O objetivo era claro: se as massas foram, no passado, meros figurantes, se a abolição foi obra de uma princesa, cujas “mãos foram beijadas pelo jornalista negro”, não adianta lutar hoje. Fica na tua, quieto e calado à espera do messias salvador.
– Nem os mortos estarão salvos do inimigo, se o inimigo vence. E esse inimigo não parou de vencer – escreveu Walter Benjamin, para quem “o dom de suscitar a faísca de esperança” têm aqueles que compreendem isso. Essa faísca brilha agora nos desfiles das campeãs, como brilhou em 1989, no Brasil redemocratizado, quando a Imperatriz Leopoldinense cantou: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.
Dois historiadores – Luiz Antônio Simas e Tarcísio Motta de Carvalho – destacaram nas redes sociais “o sopro de vivacidade” das seis escolas do Rio que participam do desfile das campeãs:
A Viradouro de alma lavada nas escadas da fé, nos fez ouvir a voz da mulher, o canto das Marias que chamam a freguesia pro batuquejê e conquistam a alforria com “o balaio do tamanho do suor do seu amor”.
O canto do caboclo da Grande Rio: “Eu respeito seu amém, você respeita o meu axé”.
A Mocidade abre os caminhos para Elza Soares “curar toda a ferida que a história escreveu”, com as armas de uma canção, de forma que os filhos do planeta fome não percam a esperança em seu cantar.
A Beija-Flor, em tantos altares e em tantos andores, segura o povo que é o dono da rua: “Ê Laroyê Ina Mojubá Adakê Exu ô ô ô”.
A Salgueiro chama o povo para ver o rei negro no picadeiro, o palhaço preto Benjamin de Oliveira: “Aqui o negro não sai de cartaz, se entregar jamais”.
O Jesus da Gente da Mangueira, rosto negro, sangue índio, corpo de mulher, filho de Maria das Dores Brasil, vítima da violência, cujo samba é uma reza pela força que encerra, consciente de que o futuro desejável só com a eliminação da miséria e sem messias de arma na mão.
O carnaval é, definitivamente, o melhor do Brasil. Neste ano, os trios elétricos da Bahia, o frevo de Recife, os blocos e as escolas de samba do Rio, de São Paulo e de todo o território nacional, nos deram várias grandes lições. Aflorou esse país solidário, tolerante, brincalhão, respeitoso com o corpo da mulher, com os movimentos sociais, com a diversidade religiosa, de gênero e de raça. Neste Brasil alegre, criativo e esperançoso, a fantasia é que espelha a realidade, tão diferente do mundo fedorento das fake news, que nos envergonha com sua homofobia, seu discurso do ódio, sua impunidade, suas rachadinhas, seus milicianos, seu cinismo e sua truculência.
O diálogo de saberes ocorreu em todas as escolas, com destaque para a Viradouro que se inspirou na tese de doutorado em Etnografia Musical sobre o canto das lavadeiras, da professora da Universidade Federal da Paraíba Harue Tanaka. Darcy Ribeiro, criador de universidades e do sambódromo, dizia que quem tem um pé na universidade, tem de ter o outro no carnaval, que são as duas asas do pássaro da cultura. Se faltar uma delas, ninguém levanta voo.
Fiofó em chamas
Com muita cadência: é desse jeito que as escolas de samba alfabetizam. No entanto, o MEC propõe agora que na sala de aula o professor realize exercícios de leitura em voz alta para avaliar a fluência do letramento do aluno, desconsiderando que é possível ler assim, sem entender o sentido do que foi lido. O que, com todo o respeito, parece ser o caso do ministro Weintraub. Já a cadência de sentidos presente no samba-enredo, com o registro da memória e dos processos históricos, cria foliões letrados capazes de ler o livro Brasil e de salvaguardar o patrimônio e a identidade nacional.
Depois que meu amigo falou tudo isso, indaguei perplexo:
– Como levantar voo com o teu bloco? Afinal, quais são as suas duas asas?
A denominação “Fiofó em chamas” – ele disse de gozação – dialogou com “El llano en llamas” de Juan Rulfo. Já “Tou com o cru pegando fogo” se inspirou em “O cru e o cozido” de Lévi-Strauss.
Na realidade meu amigo, que eu tanto admiro, não saiu em nenhum bloco, impedido por uma biópsia. Quando cessou o efeito da anestesia, ficou com fiofó em brasa, assistindo em pé os desfiles diante da TV. Em nome da privacidade, não revelo o seu nome, mas ele pediu que registrasse aqui agradecimentos aos doutores Ronaldo Damião, Carlos Jardim, Leonardo Kayat e Jaime Garcia que suavizaram sua agonia com muita competência. Em 2021 – quem sabe? – o Fiofó Em Chamas incendeia as ruas.