“As pessoas pensam que um fato aconteceu só porque está impresso em grandes
letras negras, confundem a verdade com a fonte 12. (Jorge Luís Borges, 1952)
Nesta quarta-feira (17), Paulinho Payakã morreu uma segunda vez, aos 68 anos, vítima da Covid-19 – a “gripezinha” que já contaminou mais de um milhão de brasileiros, matou 50.000 e dizimou o já precário sistema de saúde do país. A primeira vez foi em 1992 durante a Conferência Rio-92, quando ele foi fuzilado pela revista VEJA e jornais de circulação nacional, sem direito à defesa. A execução sumária de Bep-kororoti – esse era seu nome indígena – está descrita e analisada em “A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”, livro de Maria José Alfaro Freire que acaba de ser publicado e que ganha uma dramática atualidade.
Foi assim. Três dias após o início da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, no Rio, chega às bancas de todo o país a revista Veja, trazendo na capa a foto de Paulinho Payakã com o título “O Selvagem”. A revista jura que ele, ícone das lutas ambientais, teria torturado e estuprado “uma estudante branca”. A reportagem de seis páginas noticia o “crime hediondo com tentativa de assassinato” de Sílvia Letícia, 18 anos, moradora na cidade de Redenção, sul do Pará. Uma clara estratégia de ataque àquele que a própria revista reconhece como “o cacique símbolo da pureza ecológica”.
Os jornais passam a disparar “notícias” diariamente em suas primeiras páginas até 22 de junho e depois, ao longo do ano, de forma intermitente. Constroem assim uma narrativa uniforme que martela a mesma versão – como se fosse press release – e se torna hegemônica.
O corpus do trabalho reúne 217 matérias sobre Payakã, incluindo reportagens, artigos, editoriais, entrevistas, cartas, charges e notas publicados pelos jornais O Globo (OG), Jornal do Brasil (JB), Folha de SP (FSP), O Estado de São Paulo (OESP) e pelas revistas Veja e Istoé, no período de junho a dezembro de 1992, escolhidos por serem os veículos de maior circulação nacional e fonte para as emissoras de rádio e televisão.
O que a mídia omitia era a luta do líder indígena que nos anos 1980 expulsou 5.000 garimpeiros do seu território, lutou contra a construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu poluidoras dos rios e destruidoras da flora e da fauna e percorreu o mundo para denunciar mineradoras e madeireiras que devastavam a floresta, sendo recebido em Washington, em 1988, pelo Banco Mundial, o Congresso e a Casa Branca. Era a luta de David contra Golias – lembra a antropóloga Janet Chernela que convidara Payakã para o Simpósio sobre Floresta Tropical na Universidade de Flórida.
O “estrangeiro”
Fluente em várias línguas, bem articulado, orador eloquente, raciocínio rápido e convincente, no seu retorno ao Brasil Payakã foi detido e interrogado pela Polícia Federal junto com o antropólogo Darrell Posey. Com base no Estatuto do Estrangeiro criado pela ditadura militar, foram indiciados no governo Sarney por “causar danos à imagem do Brasil no exterior”. Forasteiro em sua própria terra, Payakã foi absolvido depois pelo STF. Às vésperas da Rio-92, em 1991, liderados por Raoni e Payakã, os Kayapó, conquistaram a homologação das Terras Indígenas Kayapó e Baú onde hoje vivem mais de 12 mil pessoas. Para o agronegócio, isso era e continua sendo imperdoável.
O currículo de Payakã registra também a forma como foi recebido na Inglaterra pelos sábios da Universidade de Oxford, que legitimaram os conhecimentos tradicionais dos Kayapó na área de etnobiologia. Tal fato, no entanto, não exime a condenação do “estupro”, se efetivamente tivesse ocorrido. Mas longe de um jornalismo investigativo – escreve Maria José – a cobertura transformou o julgamento de Payakã num ataque às populações indígenas e a seus direitos constitucionais. As manchetes berravam:
“Ricos, caiapós possuem carros e até aviões” (OG-8/06); “Ouro transforma índios em Marajá” (OG-10/06); “Índio não quer apito, prefere caminhonete” (OG- 14/06); “Índios se associam a empresa inglesa” (OG-17/06); “Os marajás da madeira” (Veja-17/06), “Ingleses continuam negócios” (OESP-24/06); “Floresta gera milhões de dólares aos índios” (OESP-14/06); “Nus mas com dinheiro no bolso” (OESP-10/06). No domingo (14/06) a mídia insistia: “Venda de mogno rendeu aos índios US 4 milhões em 91” (OG), “A verdadeira face do capitalismo selvagem” (OG), “Índios caiapós dominam a cidade de Redenção” (OESP), “Caiapós ricos atraem moças de Redenção” (JB).
O Globo continuou insistindo muito depois, em 2002, afirmando que os índios Cinta-Larga, de Rondônia, teriam mais de US$ 2 bilhões de dólares, sem indicar fontes ou apresentar provas e sem se preocupar em perder a credibilidade com a divulgação de algo tão estapafúrdio. Os dois bilhões de dólares são tão verdadeiros quanto o estupro. As havaianas do caicque João Bravo, que com elas aparece na foto, deviam ser certamente de ouro. No caso de Payakã, as reportagens também não traziam informações novas, mas especulavam sobre o ‘poder’ econômico e prestígio dos Kayapó. Esse tópico também é tematizado na reportagem da IstoÉ (1/07) “Índio gente fina – Os caciques brasileiros que enriqueceram explorando como bons capitalistas, as riquezas de suas reservas”.
Os desmentidos
A estratégia consistiu em elaborar uma narrativa ‘noir’, que das páginas policiais se deslocou às páginas editoriais, onde as discussões geram questionamentos sobre a legitimidade e a legalidade de privilégios que reconhecem a posse de territórios pelos povos originários. A mídia não ouviu os implicados, o “outro lado”, alimentando os preconceitos que circulam sobre as populações indígenas. Nunca foi tão oportuna a proposta de Bertrand Russell para que as escolas ensinem a arte de ler os jornais com desconfiança, hoje extensiva às redes sociais.
– O tratamento que os veículos mencionados dispensaram à acusação – guardadas suas heterogeneidades – pode ser caracterizado como sensacionalista, ao lançar mão de elementos sórdidos, além de parcial e tendencioso – já que uma das partes do conflito, a vítima, tem um lugar privilegiado na construção da versão dominante. É ainda preconceituoso, na medida em que aciona representações do índio, ancoradas nas qualificações, de um lado, de violência, canibalismo, primitivismo, e de outro, de riqueza e poder, enquanto privilégios ilegítimos – conclui a autora.
Ao mesmo tempo em que essas linhas consensuais se cristalizam, é possível observar no mesmo material ‘dados’ dispersos, minimizados, que não ganharam espaço nem força na constituição da notícia. Dados, por exemplo, sobre a agressão de Irekrã, mulher de Payakã, qualificada pelos jornais como canibalismo, assim como sobre a tentativa de homicídio foram desmentidos, mas sempre nesses espaços marginais. Nesse sentido, um único box do JB traz “Legistas desmentem atrocidades” (14/06), assinalando detalhes inverossímeis da versão dominante. Os desmentidos eram dados em notas pequenas.
Num outro plano, os jornais oferecem ‘dados’, também de forma marginal, sobre a complexa rede de interesses locais em jogo, que poderiam dar indícios da forma pela qual a acusação foi apropriada por uma luta política local de Redenção. A esses dados marginalizados não lhes foi atribuído nenhum peso na coerência das narrativas e, no entanto, poderiam apresentar elementos para estabelecer relações de causalidade e dar inteligibilidade aos ‘fatos’.
Nunca houve provas do estupro anunciado na capa da Veja. Payaká foi declarado inocente em primeira instância, em 1994, inclusive da acusação de lesão corporal. Depois, o Tribunal de Justiça do Pará – aquele mesmo que inocentou os assassinos do massacre de Eldorado dos Carajás – acatou a acusação apenas de lesão corporal. O objetivo claro era desqualificar Payakã e mobilizar opiniões contra os direitos indígenas apresentados sempre como se fossem privilégios.
Acusação política
A fundamentação teórica da pesquisa se apoia no trabalho de Van Dijk sobre o tratamento que a imprensa europeia dispensas às minorias étnicas. Ele questiona o princípio da neutralidade e da objetividade dos meios de comunicação e propõe que a mídia seja estudada como uma instituição social submetida a um conjunto de demandas políticas, sociais, econômicas e técnicas. Dessa forma, ela não é um lugar neutro de observação, mas uma voz ativa, um agente produtor de imagens e representações.
– Eu entendi que não era acusação de estupro, e sim uma acusação política de um crime que eu realmente não cometi. Com o tempo, comecei a entender direitinho como o homem branco monta o esquema para prejudicar os outros” – disse Payakán, citado pelo jornalista Felipe Milanez, que foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai. A primeira morte de Payakã fez sofrer sua esposa Irekran e suas filhas Tânia, Oé e Maial, tanto quanto a sua segunda morte. As “verdades” fabricadas sobre o “estupro” consumaram o fuzilamento. Mil anos se passarão e a Veja jamais será perdoada por seu crime – esse sim hediondo – similar aos massacres cometidos pelos bandeirantes dos tempos coloniais.
Em seu artigo, Milanez lembra que na mitologia, os Kayapó vieram do Céu, de um outro planeta, para habitar a Terra, depois que um caçador encontrou um buraco de tatu e desceu por ele, sendo seguido pelos demais. Agora, Paulinho Payakã faz o caminho de volta. Por isso, é oportuna a edição do livro sobre a construção do réu, como forma de ler a história, ressuscitar Payakã de sua primeira morte e preservar sua honra e a memória de suas lutas.
Referências: 1) Maria José Alfaro Freire: A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”. Natal. Edufrn/CAPES. 2019. (Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ sob orientação de João Pacheco de Oliveira. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27962.
2) Janet Chernela. Remembering Paulinho Bepkororoti Paiakan. 19/06/20. https://www.salsa-tipiti.org/covid-19/remembering-paulinho-bepkororoti-paiakan-6-19-20/
3) Felipe Milanez. Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti! 18/06/2020. https://www.cartacapital.com.br/artigo/viva-paulinho-paiakan-viva-bepkororoti/
4) Márcio Santillo. Paiakan, tradutor de mundos. Instituto Socioambiental. 18/06/2020 – https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu-blog-do-ppds/paiakan-tradutor-de-mundos?utm_source=isa&utm_medium=&utm_campaign=
P.S.1 – Defesa de tese Ana de Melo: O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na trajetória dos Movimentos Indígenas no Brasil (1972-1988). – Doutorado em História Política. UERJ, em 18/06/2020 Banca: Edgard Ferreira Leite (orientador), José R.Bessa Freire (Uerj), João Pacheco de Oliveira (UFRJ), Antônio Rito (Uerj), Cláudia Barbosa (FSB). A tese discute a relação da mídia com o movimento indígena e usa como fonte crítica o jornal O PORANTIM.
P.S. 2 – Líder e educador Tuyuka, o sábio Higino Tenório morreu nesta sexta (19) vítima do coronavirus, deixando todo o Rio Negro de luto. Sua vida será tema da próxima coluna do Diário do Amazonas.