A inveja é uma merda, especialmente quando ela permanece escondida, te consumindo por dentro, corroendo teu coração aos pouquinhos, diariamente, incessantemente. A situação se complica, quando é um irmão que inveja o outro. Foi por causa do olho gordo que Caim matou Abel.
Dizem os entendidos que esse sentimento vil e mesquinho se transforma em admiração, se for publicamente reconhecido. É o que faço a seguir, confessando que morro de inveja do meu irmão João Roberto, mais conhecido como Tuta, que nasceu um ano e meio depois de mim.
O meu mano Tuta é um artista que tem o dom de conferir suavidade e leveza naquilo que toca. E isso desde criança, desde sempre. Suas mãos são mágicas. Quem duvidar que pergunte nas ruas do bairro de Aparecida se já houve alguém capaz de engilhar uma curica tão bem como ele. Com o polegar e o indicador, criava diversos círculos concêntricos fininhos, delicados e profundos, transformando uma reles folha de papel num ágil pássaro voador. Além da curica, confeccionava também papagaios.
Os papagaios dele tinham qualidade similar aos do Geraldo da Micas, que eram exportados para outros bairros. O Tuta sabia escolher as talas e montar uma armação bem medida, com um senso de equilíbrio e proporção. Dominava a arte de empinar, flechar e embiocar com elegância, produzindo aquele farfalhar com a rabiola de pano ou de papel contra o vento. O vento gostava dele.
Mas parecia não gostar de mim. O único papagaio que fiz na minha vida era ‘zambeta’, ‘cangula’, parecia gringo bailando samba. Não flechava. Dava repuxões desengonçados no céu. Quando tentei embiocar, ele despencou em direção ao chão, num mergulho sem volta. Não sei se foi a fôrma, a barrigueira, o peitoral ou a rabiola, mas o bicho era ‘penso’ e troncho, só voava de lado. Puxa vida, eu queria tanto ter as mãos do Tuta!
As mãos do Tuta
Quando completou dez anos, o Tuta ganhou de presente do padrinho Eduardo uma caixa sanfonada de ferramentas, com cinco gavetas. Tinha tudo lá dentro: martelo, alicate, chaves de fenda, serrote, furadeira, broca, lixadeira, lima, um jogo de pincéis, lanterna, afiador de faca, canivete, lápis para carpinteiro, além de lixa, cola, carretel com fios de nylon, prego, parafuso, arame, barbante, fita adesiva e oscambau a quatro.
Com essas ferramentas, as mãos habilidosas do Tuta fizeram miséria. Ele construiu pião, inventou óculos com caroço de mari-mari, criou um time inteiro de futebol de botão feito de tucumã, fabricou cangapés, arquitetou uma casa de boneca, toda colorida, para a Preta e, estimulado pelo velho Barbosa, de quem era o filho preferido, desmontou e remontou um aparelho de rádio. E ainda sobraram peças.
Desenhar era com ele mesmo. Um dia, a diretora do Colégio de Aparecida, irmã Consolata, chamou a mamãe em sua sala. Enfurecida, exibiu uma folha de papel: – “Olhe só o que o seu filho aprontou!”. Ele havia desenhado a secretária do Geraldo Pimbinha, uma moça do interior, sentada num penico transparente, fazendo cocô, celulites à mostra. O desenho era tão realista que a “Fera” – esse era o apelido da moça – reclamou da mancha em sua reputação: – “Ele não podia ter me fotografado assim”.
Não preciso dizer que sou nulo em desenho. Essa é a raiz de um sentimento ambíguo: você admira aquilo que o outro faz muito bem e que você não é capaz de fazer. Andar de bicicleta, por exemplo. O Tuta descia o Plano Inclinado, com as mãos soltas, pedalando sem segurar nos guidões, fazendo a curva na Rua Dr. Aprígio, usando apenas o peso do próprio corpo. De mãos soltas. Como era possível aquilo, se eu não conseguia me equilibrar nem num velocípede?
A elegância do Tuta estava presente em todas as atividades que realizava. No futebol, tinha um drible seco, curto e gracioso. Nos salões, era um tremendo pé-de-valsa, capaz de rodopiar horas, com sucesso absoluto entre o mulherio, enquanto eu sou um poste de concreto na hora de dançar, tão desengonçado como a minha ‘cangula’.
O filho do Tuta
Intrigado com tanto maniqueísmo, o leitor duvida: – “Existe isso? De um lado, alguém que faz tudo bem e, de outro, alguém que faz tudo mal?” A dúvida procede. Faz sentido. No entanto, o que convém registrar aqui é COMO o admirador-invejoso percebe a realidade, e não julgar se essa percepção, que alimenta seu sentimento, é verdadeira. Ela pode ser até exagerada, mas se acreditamos nela, então funciona.
Não interessa se o Tuta imitava com perfeição a voz do Nelson Gonçalves, o que importa é o arrebatamento que eu sentia quando ele cantava Êxtase ou Doidivana pronunciando os erres que nem o Belmiro Vianez no programa de calouros A Hora da Onça da Rádio Difusora: “E assim, como faz na flo-ooor qualquer abelha, sugarei tua boca vermelha, num beijo espetacularrrrr”. E a doidivana das noites vadias? “Tu és doida, és doida varrida, e eu te amando na vida, sou doido também”.
O Tuta trazia Nelson Gonçalves para o banheiro da nossa casa: A deusa da minha rua, A flor do meu bairro, Normalista, A volta do boêmio. Cantava sibilando os ‘esses’: “Vá rever, os teus rios, teus montes, cascatas, vá sonhar em nova serenata e abraçar seus amigos leais”. Ou então soluçava: “Ela é tão rica e eu tão pobre, eu sou plebeu, ela é nobre, não vale a pena sonhar”. Ou ainda: “A minha história é vulgar, mas algo ficou provado, nem sempre o primeiro amor, é o primeiro namorado”.
O Tuta canta, desenha, escreve, compõe música – já fez o samba-enredo da Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida. Joga dominó, passa ‘gato’ e usa códigos: quando fala “Curva de Tamburelo’ – onde morreu Ayrton Sena – seu parceiro Humberto Bacurau sabe que tem de matar a sena.
Ganhou concurso realizado em 2007 pela Secretaria Municipal de Cultura, com um belo livro, bem escrito, nostálgico, intitulado “Memorial Aparecida – síntese da história de um bairro”. Lá, ele passeia pelas ruas e becos, o arraial, a novena, a feirinha, os botecos, a malandragem, os velórios, as festas juninas, as fofocas, o cotidiano. Enquanto eu quero morrer de Aparecida, ele vive Aparecida, de onde nunca quis sair.
A declarada inveja que tenho do Tuta revela o profundo sentimento de admiração por ele, meu mano-velho, que completou 60 anos, mas permaneceu menino, só que com a cabeça branquinha-branquinha. Já que não posso ser o Tuta, como não sou filho do Tuta, me basta o orgulho de ser irmão do Tuta. Se o leitor permitir, proclamo meu amor por ele no dia em que se torna sexagenário. Are baba! Namasté!
Ribamar Bessa Freire é jornalista, professor universitário e assina a coluna Taqui pra Ti, publicada originalmente no jornal Diário do Amazonas.