Em artigo anterior, a propósito do encontro entre culturas distintas sem uma guerra entre civilizações, utilizei o livro de Ian Buruma Occidentalism.
Em livro recente o antigo professor de Oxford aproximou o foco para entender o que aconteceu em seu país natal, a Holanda, que de país calvinista, reservado e tolerante se tornou palco de ações violentas (ver Murder in Amsterdam: the Death of Theo Van Gogh and the Limits of Tolerance, London, Atlantic Books, 2007).
Um líder populista “de direita”, Pim Fortuyn, foi assassinado em 2002 por um fanático não muçulmano. E o cineasta Theo van Gogh, que criticava o desrespeito à liberdade e aos direitos humanos por parte de certas correntes islâmicas, acabou assassinado em novembro de 2004 por um ativista muçulmano ligado a grupos terroristas.
Teria terminado o momento da História em que a Holanda se distinguiu pela capacidade de absorção de culturas diversas? Não foi para lá que se mudaram os judeus espanhóis e portugueses perseguidos pela Inquisição? Não foi em Amsterdã que houve a única greve geral de monta contra a deportação dos judeus?
Não foi na Holanda que Baruch Spinoza filosofou e, mais recentemente, em 1934, Huizinga disse que vivia no país da tolerância, onde mesmo os extremismos seriam “moderados”? E não é certo que 45% da população de Amsterdã em 1999 era de origem estrangeira?
E o prefeito na época dos assassinatos não se chamava Cohen, bem como um importante vereador-administrador da cidade ostentava o nome de Ahmed Aboutaleb?
Por suas regras tolerantes, a Holanda acolhe perseguidos políticos. Há milhares de refugiados sírios, iranianos, marroquinos, berberes, turcos, somalis, grupos tâmeis de Sri Lanka, etc.
Além das muitas centenas de milhares de “trabalhadores convidados”, como são qualificados os que encontram emprego e levam a família. Entre estes, muitos são de origem surinamesa ou vindos da Indonésia, educados em língua holandesa, o que lhes facilita a integração.
Sendo assim, até que ponto algo específico da cultura e da religião muçulmanas engendraria a violência atual e as reações racistas ressurgentes?
Buruma procura demonstrar que as diferenças de visão entre fundamentalistas ocidentais ou islâmicos podem conviver com mútuo proveito, desde que não usem a força e respeitem as regras da Constituição laica.
Não desconhece os argumentos, como os da somali Ayan Hirsi Ali e de alguns intelectuais de passado esquerdista e presente paixão conservadora, que alertam para os riscos de leniência na defesa dos valores universais da civilização ocidental. Mas pondera que a incorporação desses valores é proveitosa quando advém de reação na própria cultura islâmica, e não como uma imposição externa.
Há que reconhecer, porém, pensa Buruma, que a Holanda do passado, branca, burguesa, liberal, tolerante, hoje é uma sociedade multirracial e multicultural, que faz parte da União Europeia e sofre a influência das multinacionais, em suma, da “globalização”.
Isso suscita reações defensivas agarradas a diferenças religiosas e culturais. No lugar das identidades nacionais e das tradições políticas democráticas que davam coesão à sociedade, multiplicam-se identidades comunitárias, religiosas ou não, que com frequência se chocam com a cultura cívica anterior.
Em outros termos, a convivência democrática não se pode basear mais na assimilação da cultura nacional predominante e na aceitação pelos recém-vindos das regras do “país legal” tal como ele existia antes.
O filme francês Entre os Muros da Escola é exemplo vivo das dificuldades de se moldarem os jovens de origem migrante, mesmo nascidos na Europa, à cultura nacional, acrescento. Entretanto, a crise que prevalece não é devida apenas à existência de “duas – ou mais – culturas”, mas a que muitos não se conformam que “seu mundo” acabou.
“O povo começa a se sentir não representado. Ele não sabe mais quem são os responsáveis.
Isso ocorre quando os “oligarcas” (a noção usada por Buruma é Regenten, referindo-se aos comerciantes burgueses, bem retratados por Frans Hals no século 17 com ar de modéstia e superioridade, que depois da 2ª Grande Guerra foram substituídos como expressão da classe politicamente dominante pelos social-democratas e pelos democratas cristãos) modernos, como o social-democrata Ad Melkert, começam a perder amarras no sentimento popular.
Mais do que irrelevantes, eles começam a ser alvos de hostilidade ativa. A política de consenso contém suas próprias formas de corrupção: a política fica emperrada na rotina de uma elite autoperpetuada, trocando empregos entre os membros do clube, para lá e para cá” (Buruma, Ian, op. cit., páginas 50 e 51).
No mundo emergente os desajustados são numerosos, não se restringem aos newcomers. Há também os que, sendo originários de “famílias de raiz”, não se conformam com a nova sociedade. De certo modo quase todos estão “desenraizados”, daí os populismos, de direita ou de esquerda (aliás, mutantes), o terrorismo, o apego aos vários fundamentalismos, à violência.
O que tudo isso pode ter que ver com o Brasil? Pouco e, talvez, muito.
Temos a sorte de viver sob uma cultura que também aprecia a tolerância (a despeito de recentes tentativas de fazer nascer um “racismo antirracista”, como diria Sartre). Sem as diferenças religiosas e linguísticas com que os europeus se defrontam, somos também um país de migrações, embora hoje predominantemente internas. Portanto, de “desenraizados”.
E desenraizados não são apenas os recém-incluídos, geográfica e/ou socialmente, à sociedade moderna. São também os oligarcas que não se conformam que ela clame por novas práticas e não querem perceber as mudanças.
O mais triste ocorre, como agora, quando os que chegaram ao poder para renovar e adaptá-lo aos novos tempos aderem aos hábitos do “clube oligárquico” e se autoatribuem a “missão histórica” de perdoar os transgressores e dar continuidade às velhas práticas.
É nesse ponto que cabe o paralelo com a situação descrita por Buruma. Não só a advertência sobre os riscos de violência, mas de riscos de novos populismos, de esquerda ou de direita, que possam preencher com uma retórica cativante a falta de sintonia entre as instituições (desmoralizadas) e o sentimento das massas.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República