Na política, em especial na brasileira, é comum o uso de estratégias diversionistas quando a intenção oculta é fugir do debate que está sendo proposto por seu adversário. Usa-se o artifício de discutir a forma no lugar do conteúdo, ou os aspectos secundários ao invés do foco principal. Esse comportamento ficou claríssimo nas reações às declarações do presidente Lula sobre a necessidade de se montar uma coalizão para governar o Brasil, concedidas em entrevista à Folha de S.Paulo. Lula disse o seguinte: “Qualquer um que ganhar as eleições, pode ser o maior xiita deste país ou o maior direitista, não conseguirá montar o governo fora da realidade política. Entre o que se quer e o que se pode fazer tem uma diferença do tamanho do oceano Atlântico. Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”. As críticas dominaram a repercussão da entrevista, com amplo destaque da imprensa. Aliás, o comportamento da mídia brasileira tem ganhado espaço no plano internacional.Digno de elogios lá fora, o governo Lula é ferrenhamente atacado internamente. A situação foi destaque do portal Le Grand Soir, que publicou crítica do jornalista Thierry Deronne (texto em francês http://www.legrandsoir.info/Chantal-Rayes-piegee-a-Sao-Paulo.html) à cobertura do caso Honduras baseada nas “informações” da grande imprensa brasileira. A constatação é a de que a contrariedade em ver um presidente metalúrgico no comando bem-sucedido do país está contaminando o noticiário. Mas voltemos à reação desproporcional à fala de Lula. Houve quem enxergasse um caráter conformista do presidente com o atual sistema político e partidário, que leva a montar uma base no Congresso Nacional com partidos de diferentes origens e vários de centro-direita. Houve quem criticasse um suposto pragmatismo para governar. Houve até (pasmem!) quem visse uma mostra de vulgarização da figura de Jesus Cristo. Mas não houve um analista, articulista ou “especialista de plantão” que se preocupasse com o conteúdo da fala. Ora, é evidente que a menção a Jesus e a Judas trata-se de exemplo utilizado para caracterizar uma situação recorrente no Brasil. A frase é um diagnóstico da realidade política, sem juízo de valor. É uma constatação. As críticas se ativeram à forma, não ao conteúdo. O fundamental do que Lula disse é que o atual sistema político-eleitoral e partidário brasileiro conduz, necessariamente, a governos de coalizão nem sempre homogêneos em termos programáticos e muito menos em ideologia. Mentiu o presidente? Disfarçou a realidade? Fez leitura incorreta do sistema brasileiro? Não. Mas o que isso importa quando há interesse oculto em tergiversar no debate que verdadeiramente vale para a sociedade? Falta aos críticos o que sobrou ao presidente: a clareza de observar que nem sempre as coalizões podem ser programáticas e/ou ideológicas. Mesmo quando, como no caso de Lula e do PT, a direção e o rumo do governo são determinados pelo presidente da República e pelo partido majoritário. Essa é a razão de por vezes as alianças de governo e no Congresso serem com adversários de ontem. As críticas ocultam o mais relevante na fala presidencial: se queremos mudar, precisamos fazer a reforma política. Fogem dessa discussão porque foi o Executivo que elaborou e enviou ao Congresso uma proposta de reforma, que teve empenho do PT, do DEM, do PC do B e de setores do PMDB para aprová-la. Quem mais se opôs à reforma foi exatamente o PSDB, aliado ao PP, PTB, PR, PDT, PSB, PV e alguns setores do PMDB. Hipocrisia dos tucanos agora atacarem Lula. A reforma não andou porque esses partidos fazem cálculos eleitorais e de poder pequenos e temem o crescimento de outras legendas, como o PT. Assim, tentam manter as atuais regras que beneficiam quem tem acesso ao poder econômico e à mídia e controla as máquinas partidárias. A alteração do sistema, no entanto, é crucial para dar mais força aos partidos e, com isso, priorizar seus programas. Significaria mudar a forma de se montar coalizões. Em outras palavras, significa compromisso maior com um plano de governo, com um projeto de nação. E é aí que o diabo mora. José Dirceu, 63, é advogado e ex-ministro da Casa Civil