O DIA EM QUE A GENY ME SALVOU

Quando cheguei, às duas da tarde, ela já estava lá, esperando. Não me conhecia e me olhou, obliquamente, me estudando como se eu fosse um fungo bolorento: quem é esse cara? Não havia viva alma no auditório da Biblioteca Pública, na Rua Barroso, em Manaus, naquele 19 de abril de 1978. Nós dois éramos os palestrantes num evento sem público sobre o Dia do Índio, organizado pelo artista plástico Álvaro Páscoa, da Fundação Cultural do Amazonas. Foi ele quem nos apresentou.

Geny Brelaz de Castro, formada pela Universidade Federal de Pernambuco em Farmácia e Bioquímica, em 1970, é a primeira índia diplomada do Brasil. Estuda fungos, comestíveis uns, venenosos outros, mas também pesquisa parasitas agressores – alguns mortais – que infectam gente, animais e plantas, e apodrecem as árvores. O outro palestrante – esse locutor que vos fala – era, então, professor da Universidade Federal do Amazonas, com uma tese inconclusa de doutorado em Paris sobre história indígena.

– Cadê o público? Quem é que vai sair de casa com esse calor infernal para ouvir falar de índio, numa hora dessas, depois de almoçar jaraqui frito com baião-de-dois? – indaguei apreensivo.

Álvaro Páscoa deu uma baforada no cachimbo e nos tranqüilizou. Já estava tudo agendado com o professor de Educação Moral e Cívica da Escola Técnica Federal, chamado Cauby, um pomposo nome de origem tupi. No horário de sua aula, ele traria os alunos de várias turmas, com controle da lista de presença.

Efetivamente, arrastados compulsoriamente, os alunos lotaram o auditório. Cauby, um sargentão, fechou as portas para ninguém fugir. Não era preciso. Geny falou primeiro e deu um show. Quem a conhece sabe do que estou falando. Ela tem tal domínio de palco e de microfone que bota no chinelo a Hebe Camargo. Cativou os meninos. Falou nas toxinas presentes na farinha que eles haviam acabado de comer, nos hábitos alimentares, nas bebidas indígenas, nas plantas medicinais. Contou histórias. Enfim, lavou a égua.

Especialista em micologia, Geny, que é da nação Munduruku, incorporou a ciência oral milenar do seu povo ao saber escrito aprendido na universidade. Ela sabe tudo sobre fungos. Pesquisou a farmacopéia indígena, os fungos na preparação do tarubá – uma bebida indígena – e os microorganismos em farinhas da Amazônia. Já era naquela época uma pesquisadora respeitada com participação em congressos e artigos publicados no Brasil e no exterior. Foi aplaudidíssima pelo auditório.

Falar depois dela era um desafio. Tentei dar meu recado. Apoiado em documentos, descrevi o desaparecimento de muitos saberes, devido ao massacre das nações indígenas, uma das maiores catástrofes demográficas da história da humanidade. Fui aplaudido ruidosamente. No debate, o professor Cauby quis se exibir para os alunos. Discordou do termo ‘nação indígena’, que eu havia empregado, considerando-o inapropriado e perigoso. Aloprou:

– Só um traidor da Pátria chama índio de nação.

Sua intervenção, aplaudida com assobios e gritos de apoio, me intimidou. Esclareci: quem chamou os índios de ‘nações’ foi o português, não era invenção minha, estava na documentação da época. O termo ‘nação’ tinha, inclusive, significado mais amplo, pois era também usado como coletivo. Recitei versinho cantado pelas crianças lusas:

– Aranha aranhão, sapo sapão, bichos de toda nação.

Fui saudado por uma onda de aplausos. Ai entendi que qualquer discurso seria aplaudido. Foi o que aconteceu no duelo que se seguiu.

Cauby: – Não existem nações indígenas. Somos todos brasileiros. Quem fala em nações indígenas quer dividir o Brasil, que é uma só nação, uma única pátria (clap clap).

Eu: – Conversa fiada. Nação é uma coisa, estado é outra. Comete erro primário quem confunde conceitos tão diferentes. Um estado pode abrigar muitas nações (clap, clap).

Cauby: – Exatamente, é o caso da União Soviética. Só os comunistas pensam assim, porque querem minar os alicerces da Pátria (clap, clap).

Eu: – Tolice. A Suíça é um estado plurinacional. Lá, tem mais nações do que buracos em queijo suíço. A existência de tantas nações não dividiu o estado suíço, não anulou sua natureza capitalista. Ao contrário, fortaleceu (clap, clap).

No final de cada intervenção, uma onda de aplausos para o orador da vez. Quem falasse por último, ganhava. A Geny só ali, na moita, calada, observando tudo. Foi aí que Cauby, que havia feito o curso da Escola Superior de Guerra, engrossou o pirão e disparou o tiro de misericórdia, com um – digamos assim – argumento triunfante:

– Hoje, não é só Dia do Índio. É também Dia do Exército Brasileiro e da vitória na primeira Batalha de Guararapes. Você não homenageou o Exército. Você é comunista.

Fiquei gelado. Hoje, parece bobagem, mas naquele contexto era uma denúncia grave. Afinal, um ano antes, de volta do exílio, foi essa acusação que me levou a passar três semanas preso, em Manaus, quando fui encapuzado e maltratado (Anexo 01). Estávamos em plena ditadura militar, com um governador biônico, Enoch Reis, nomeado pelo general Geisel, que por sua vez também não havia sido escolhido pelo voto popular.

Os jovens de hoje, em sua maioria, não têm a menor idéia do horror que foi a ditadura. Não havia liberdade de expressão e de associação. O povo não podia votar em presidente, governador, prefeito. A censura impedia que as idéias circulassem nos jornais, no teatro, na música, no cinema, nos livros, na sala de aula. Professores, estudantes, jornalistas, artistas, músicos, cineastas e sindicalistas eram presos não pelo que fizeram, mas pelo que disseram ou pensavam e até pelo que achavam que você tinha a intenção de pensar.

Em todas as universidades, havia uma Assessoria Especial de Segurança e Informação – a AESI, com delatores pagos com bons salários para dedurar quem expressasse opinião contra a ditadura. Na Universidade do Amazonas, seu chefe era José Melo de Oliveira. Tenho em mãos cópia de dois ofícios circulares assinados por Melo, em 1974, e enviados a todas as faculdades e institutos. Um deles pedia os nomes das pessoas que pretendiam organizar “uma exposição de livros soviéticos”, o outro exigia controle sobre a formatura de alunos e até sobre o discurso do orador da turma (Anexo 03).

Depois disso, ele fez carreira na administração publica, foi Secretário de Educação do governador Amazonino Mendes, e ficou conhecido como José Melo Merenda, por causa do desvio de recursos da merenda escolar. Atualmente é Secretário de Estado do Governo Eduardo Braga (PMDB, vixe, vixe!). (Anexo 02).

Não podemos esquecer, também, que em Manaus, no período de 1975 a 1979, funcionou um centro de formação, que recrutava e treinava agentes especializados em espionagem, infiltração, repressão política e torturas, financiado pela Operação Condor, conforme comprovam documentos encontrados nos arquivos da polícia política paraguaia, abertos ao público pela Justiça de lá (O Globo, domingo, 7/05/2000, pg. 48)

Há quem, hoje, defenda a ditadura militar. Depois de dois artigos contra a tortura publicados aqui nesse espaço, recebi cartas de alguns leitores com um argumento bizarro: a ditadura foi necessária, porque se os comunistas vencessem, eles aboliriam a liberdade de expressão, suprimiriam as eleições, prenderiam seus opositores, torturariam, etc. Ou seja, para impedir a implantação de um hipotético regime totalitário se fez tudo aquilo que supostamente o inimigo faria: prisão, tortura, censura, etc.

Ih, meu espaço está terminando! E a Geny, como foi que ela me salvou? Ah, a Geny foi genial, leitor (a)! Quando o sargentão me emudeceu com aquela acusação, Geny pegou o microfone, piscou um olho discretamente pra mim e fez uma defesa tão delirante quanto à peça de acusação, dando um xeque mate no Cauby:

– Se o palestrante é comunista, então eu também sou comunista e o Comando Militar da Amazônia (CMA) está cheio de comunistas, porque tudo que ele disse aqui, eu ouvi foi da própria boca dos generais, lá dentro do quartel (clap, clap, clap, claps).

Cauby ficou bestificado. Geny tinha autoridade pra falar. Ela havia acabado de receber uma medalha do CMA, por ter descoberto algum fungo lá aquartelado. Depois disso, fez concurso para professora da UFAM, onde foi Chefe do Laboratório de Patologia, ganhou muitas medalhas, inclusive a do Mérito Universitário, foi convidada a palestrar na Índia, na Argentina, na Europa, França e Bahia, se aposentou, mas continua ativa, pesquisando, é feliz e vive para sempre no meu coração: a solidária e generosa Geny.

ANEXOS:

01. http://www.taquiprati.com.br/home/apresenta-cronica.php?cronica=cronica20-05-1996

02. http://www.taquiprati.com.br/home/apresenta-cronica.php?cronica=cronica17-12-1996

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