Faleceu, na sexta-feira da semana passada, um dos raros brasileiros-símbolo, por seus gestos e suas falas. Foi sua fala na Câmara de Deputados, em 1968, que levou a ditadura a fechar o Congresso que ela mantinha aberto, passivo, dependente, inoperante e irrelevante, apenas um adorno do sistema ditatorial para dizer que aqui havia uma diferença em relação a outras ditaduras.
Márcio Moreira Alves tornou-se símbolo. Símbolo, para todos nós, da tomada de posição, do gesto daqueles que não querem ficar calados, e que falam independentemente das consequências das verdades ditas. Símbolo da intransigência com os poderosos, da política com base em princípios, dos políticos com causas. Marcito foi o símbolo da falta de transigência com o golpe militar, mesmo que sua tomada de posição tenha levado ao agravamento da repressão. A conseqüência foi um acirramento da maldade ditatorial, mas também o fim da falsa impressão de paz que resultava do silêncio dos que transigiam com a ditadura.
Marcito não queria fechar o Congresso; queria, na verdade, abri-lo. Mas só tinha a força da fala, que às vezes espera anos para manifestar seu poder – como em verdade ocorreu, 17 anos depois. Ele não queria com seu discurso fechar o Congresso, mas não aceitava pagar o preço da tolerância para manter a ditadura disfarçada, aceita em nome do “menos mal”. Há momentos em que a política precisa ser intransigente, existir em nome da verdade, sejam quais forem as consequências. Marcito foi um exemplo disso. Fez o que devia ser feito naquele momento, diante da omissão de muitos, tanto dentro do Congresso quanto nas ruas.
Ele e o Brasil pagaram um preço alto com o fechamento do Congresso, mas um preço que estava sendo pago aos poucos, e deixando a impressão de que não era pago. Em vez de admitirmos com clareza que o Brasil vivia uma ditadura, preferíamos dizer que a ditadura poderia ser pior. Márcio Moreira Alves é um símbolo do momento da verdade e do preço que se paga por ela. Hoje, em tempos de democracia, Marcito não deixaria de denunciar que a democracia não está completa, que os avanços na educação, na transparência, na ética são insuficientes para fazer um Brasil justo e eficiente.
Ele não foi somente um político, foi sobretudo jornalista. E foi também um símbolo do jornalismo que faz a pauta e a matéria comprometidas com a verdade, conforme a verdade, sem manipulação. Márcio foi ao fundo da verdade como repórter, e nessa função descobriu que, além dos escândalos e vergonhas, há verdades positivas a serem ditas sobre a política.
Não duvidou em dizer as boas verdades na sua coluna, no jornal O Globo. Eram os “Sábados Azuis”, em que descrevia as experiências de políticas públicas implantadas ao longo de todo o território brasileiro, por prefeitos e governadores que aos poucos iam mudando, localmente, a realidade brasileira.
Márcio foi um exemplo de jornalista e de político, por apresentar uma qualidade rara: a intransigência em defesa da democracia e da verdade, inteiras e completas. Seu exemplo é ainda maior em um tempo no qual a transigência, tanto na política quanto no jornalismo, tornou-se constante. A transigência dos políticos que defendem as saladas partidárias, em nome da vitória eleitoral, da conquista de cargos e de evitar o pior. E do jornalismo que, em busca da venda dos jornais, tem preferência pelos escândalos e não pelo debate aberto, pela verdade, mesmo que em torno de fatos positivos.
Entramos em um tempo de transigências aceitas como a regra normal da política. Por isso, nesta semana, morreu a boa intransigência – contra a corrupção, a ditadura, a mentira.
Márcio fará falta como analista, jornalista, sobretudo como amigo de tantos. Mas sua falta será compensada pelo papel que desempenhará como símbolo, pela memória de suas falas e de seus gestos. Acima de tudo, pelo fato de sua defesa da democracia ter provocado o agravamento momentâneo do regime autoritário, como prova de sua fragilidade e fracasso.
Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF