Culpa de quem?
Em recente discurso, o Presidente do Senado, José Sarney, afirmou que a crise que atravessamos é problema da Casa inteira, e pediu que todos respeitassem sua biografia. O Presidente disse duas verdades, mas incompletas. É certo que o problema é do Senado, da democracia, do Brasil inteiro. Mas a culpa é acima de tudo do Presidente da Casa e sua Mesa Diretora. É certo também que sua biografia de ex-presidente da República, em um momento decisivo de nossa história, merece nosso respeito, mas isso não é uma desculpa. Na verdade, nisso está uma das razões que dificultam o enfrentamento da crise.
As biografias nascem da política, mas elas muitas vezes não se sustentam na política. A biografia do senador Sarney é um forte argumento para a história. Mas para o exercício do cargo político que atualmente ocupa, o que importa são suas falas e gestos no presente.
O Brasil tem uma dívida para com o Presidente Sarney, que pode se orgulhar de ter sido o condutor do processo de democratização do Brasil. Durante o seu mandato como presidente da República, foi capaz de levar adiante todos os compromissos das forças democráticas. Mas isso é história. Quando decidiu continuar na política, ele optou por guardar sua biografia até o final de suas atividades atuais.
Se, depois de seu mandato de Presidente da República, o ex-presidente Sarney tivesse se recolhido à história, fora da política, como fazem presidentes em outros países, certamente ele seria hoje tratado como um “velho estadista”, não pela idade, mas pela reserva biográfica. Como acontece com Mandela, Carter e tantos outros ex-presidentes, inclusive no Brasil. Personalidades respeitadas, mas ativos apenas nos momentos decisivos e como conselheiro da nação, sem cargos. Ele seria visto como referência do político que, jovem, contestou forças conservadoras de seu próprio partido; e adulto, conviveu com o regime militar; mas, na maturidade, teve a coragem de se distanciar do autoritarismo e, diante das adversidades de Tancredo, teve a competência de conduzir o País no momento da máxima inflexão política da segunda metade do século XX.
Mas preferiu a política à história. Escolheu o mandato de senador e a volta à presidência do Senado. Com isso, o Senado passou a ter um presidente maior do que o cargo, e por isso fica sem gosto para enfrentar o dia a dia de suas atividades.
O problema é de todos, mas o primeiro culpado da crise é o presidente Sarney, porque a ele cabe zelar pela necessária credibilidade da Casa. Seu discurso, entretanto, não analisa as causas da crise, não oferece propostas para superá-la, nem nos aspectos morais nem nos estruturais. Não propõe iniciativas para superar o descrédito do Senado. Uma das causas dessa ausência de proposta, desse alheamento da crise, decorre de que o Presidente Sarney não aparenta ter consciência da dimensão da crise que o Senado atravessa. O discurso passou a impressão de que se trata apenas de um descontentamento momentâneo da opinião pública, inflado pela mídia, em franco desrespeito à sua biografia. Essa visão resulta da mistura de uma biografia maior do que a política e o cargo.
O resultado é um presidente que, além de estar amarrado em uma rede de forças que misturam interesses públicos com pessoais, não tem o necessário gosto para enfrentar as dificuldades, por ter uma biografia maior do que o cargo que ocupa. Daí sua falta de percepção do tamanho da crise. Quem enfrentou cinco anos de presidência da República, em um momento tão grave e de difíceis mudanças, não consegue se dedicar a um desafio que parece menor.
A culpa é também nossa, dos demais senadores, que não estamos encontrando o caminho para casar o Sarney ex-presidente da transição democrática com o Sarney presidente de um Senado em crise. Mas a culpa é, sobretudo, do Presidente Sarney, que precisa vestir a camisa do cargo atual, guardando a biografia para os historiadores. Essa foi sua opção, essa é sua função.
Cristóvam Buarque é senador pelo PDT-DF.