“Quem viu consolador gentil como a flauta?/ A flauta conta a história do caminho, manchado de sangue de amor./ Conta a história das penas de amor de Majnun.*/ (…) Toda noite, espíritos são libertados dessa jaula,/ E tornados livres, sem comandar nem ser comandados./ De noite, o prisioneiro não tem consciência de sua prisão,/ De noite o rei não tem consciência de sua majestade.”
Este é um excerto do livro-poema “Suíte para os habitantes da noite”, de 1994, com o qual Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto, o Poeta Aníbal Beça, venceu o VI Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira. E nós o perdemos, esta semana, com justo lamento.
Aníbal era um poeta letrista, nos moldes de Vinícius de Morais. Escrevia poesia à espera da música. Tanto que, na obra acima referida, cada estrofe se destina a um ritmo – chorinho, lundu, serenata, toada de boi bumbá etc. Suíte, aliás, é “no período barroco, composição instrumental feita de uma série de movimentos com características de danças; partita” (Houaiss).
São estrofes de uma carta-compromisso de Aníbal. Engajamento? “a cidade e o rio negro/ Um namoro ao avesso/ nos dois corpos de costas”. Amor à cidade?: “Em mim eu sou o que não fui/ comigo fui o que não era/ o derrotado nominado/ o nominado vencedor/ e resta só o testemunho/ do cão que me acompanha agora/ e dessas ruas que me sabem antes”. Universalidade?: “E colho o sal da noite a lua moura/ crescente luz de foice me assassina/ e me morro no haxixe com Rimbaud”. Sofrimento?: “Esta anábase é de hora aberta desnudada/ tão desmedida como foi a minha vida/ de nada me arrependo apenas me perdôo/ por que meu vôo nem sequer se iniciou” – “anábase”, segundo o Houaiss, é o “período de progressão ou acentuação de uma doença” e todos sabemos como o poeta lutou com o diabetes.
Falo de música e de Aníbal porque os dois eram a mesma coisa. Basta lembrar os antológicos sambas-enredos na Sem-Compromisso, onde exaltou, vitoriosamente, Hotel Cassina e Joana Galante, ou no Morro da Liberdade, com antológica homenagem a Charles Chaplin.
Entrego a palavra ao compositor Marcus Accioly:
“Ora, todos sabem, a música é irmã gêmea da poesia. …Assim é que o 6º Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira foi julgado por dois músicos (que também são poetas) e por um poeta (que também é músico): Milton Nascimento, Paulinho da Viola e eu. … Livros de todo o país (7.038), em caixas e caixas, foram separados, lidos e analisados durante meses, até uma possível certeza, uma convicção. O trabalho foi compensado pela descoberta de alguns textos inéditos e, principalmente, pela alegria do resultado, único e unânime: ‘Suíte para os habitantes da noite’.
“O poeta escolhido, Aníbal Beça, de Manaus, Amazonas, escreveu uma suíte para os habitantes da noite do Brasil. … É um livro poderoso e vigoroso como um rio, como uma árvore arrancada, como um tronco de jacaré”.
Tive a honra de patrocinar, como prefeito, o antológico vinil de suas composições com Roberto Dibo. Resgatemo-lo. Registrei nos anais do Senado o necessário Voto de Pesar. Aníbal não seria o primeiro a ter em morte a consagração que não obteve em vida. Devemos isso a ele. Saudades, Poeta.