“O que é o bem e o que é o mal? Existe apenas um bem: o saber. E
um único mal: a ignorância. Nada mais” (Sócrates. Ano 380 a.C.)
Ao
Arthur Neto, ex-deputado federal, ex-prefeito de Manaus, ex-senador da República e ex-democrata
Meu ex-timado amigo,
Na qualidade de ex-eleitor teu, o que me confere legitimidade para te cobrar, “escrevo esta carta, mas não repare os senões”, sob a inspiração da música de Waldick Soriano. Quero dizer o que penso sobre o teu suicídio político cometido na segunda-feira (17), no Palácio do Planalto, ao declarar voto no Coiso, com uma justificativa desconchavada sobre a luta do bem contra o mal, que não é digna da tua inteligência. Teu discurso, realçado no rosto cabisbaixo e na expressão facial envergonhada da foto, ignorou três questões cruciais:
- As aulas de filosofia sobre esse tema ministradas no curso clássico do Colégio Estadual do Amazonas, nos anos 1960, pela profa. Lindava Mota, apelidada de “Por-conseguinte-então”;
- O “panfleto tecnológico” proposto pelo saudoso Theodoro Botinelly no Comitê de Apoio à tua candidatura a deputado federal nas eleições de 1978, ao lado de Felix Valois para o Senado;
- A defesa da tortura e do torturador coronel Ulstra feita pelo teu agora candidato que, sob protesto nosso, te chamou recentemente de “Bosta” com “B” maiúsculo, o que é mais fedido ainda.
Aulas de filosofia
A professora Lindalva criticava o profeta persa Mani, criador no séc. III do maniqueísmo, porque ele via o mundo dividido entre o Reino da Luz e o Reino das Trevas, modelo hoje defendido pelo Coiso. Para desconstruir visão tão simplória, a mestra conhecida também como Lili Silogismo recorria a Sócrates. Ora, se o único bem é o saber e se o único mal é a ignorância e se todos sabemos alguma coisa, mas ninguém sabe tudo, logo o bem e o mal convivem dentro de cada um de nós – dizia o filósofo grego.
Por conseguinte, então, identificar a dimensão do bem e do mal requer medir o tamanho da luz e do obscurantismo dos candidatos, o que você não fez naquela cena patética do haraquiri público no Palácio do Planalto, quando declarou apoio incondicional ao Coiso. Tua justificativa foi uma xaropada discursiva confusa, que ignorou a régua socrática e não avaliou a enormidade da estupidez do dito Coiso, cuja ignorância o transfigura na própria encarnação do Mal.
O teu agora candidato, que nega a ciência, tratou a pandemia de “gripezinha” que “mete medo apenas em maricas”. A vacina “causa aids, afina a voz do homem” e faz “crescer barba” na mulher. Ele arrancou a máscara, que rejeitava, do rosto de uma criança. Comprou toneladas de cloroquina inócua para o vírus do covid-19. Debochou da dor dos que perderam seus entes queridos. Manaus, cidade por ti governada, asfixiada sem oxigênio, te fez abrir valas coletivas no cemitério, com fotos disseminadas na mídia internacional.
Foi aí que o Coiso – “eu não sou coveiro” – aloprou na reunião ministerial quando te insultou: “Esse prefeito de Bosta aproveita agora um clima desse para levar terror ao Brasil. Conheço a ideologia dele, o que prega e o que sempre foi”. O vídeo foi visto por todo o país. Tua resposta veio em nota oficial contundente aplaudida por nós, afirmando que tais insultos “representam um verdadeiro ‘strip-tease moral” feito por quem não tem mais a mínima condição de governar o Brasil”:
– O presidente quebra a liturgia do cargo. Vulgariza a instituição que deveria honrar. Exibe despreparo. Como alguém pode, sem se desmoralizar, conviver com uma pessoa dessa baixa extração? Que tempos! Que costumes! – diz tua nota, na qual o Coiso aparece como “um ser inculto, despreparado e deseducado”, defensor do “submundo das ‘rachadinhas’, da ditadura e das torturas”.
Panfleto tecnológico
O prefeito que assinou essa nota definitivamente não é um “Bosta”, mas um democrata inteligente, um humanista, cujo discurso contra a ditadura lembra o candidato a deputado federal de 1978, que fazia dobradinha com Felix Valois, aspirante ao senado, ambos combativos e merecedores do nosso voto. Criamos até um Comitê de apoio com gente do TESC: Márcio Souza, Aldísio Filgueiras, Stanley Whibbe. Numa reunião nossa, Botinelly teve uma ideia “genial’ para reforçar a campanha com “tecnologia de ponta” da época.
Posto que não contávamos com a grana hoje abocanhada pelos partidos, faríamos rifas e vaquinhas para comprar cinco mil fitas K-7. Gravaríamos músicas que seriam interrompidas aqui e ali por propaganda subliminar dos candidatos. “É o panfleto tecnológico” – justificava Botinelly, o visionário Botica, que nos fez ouvir um teste com Noites de Moscou na versão do Conjunto Farroupilha gravada por Dolores Duran. Ficou assim:
Música: O amanhecer já não tarda, amor, por favor te peço lembrar
Voz: Contra a ditadura, Arthur Neto para Deputado Federal
Música: Esta noite que tão feliz passou, bela noite a sonhar Moscou
Voz: Democracia Já, para o Senado Felix Valois.
Ficamos todos estupefatos.
– “Essa ideia é inexequível, não podemos citar Moscou” – objetou alguém sensato, que não fui eu, porque não sou sensato, jamais usaria palavra tão esdrúxula e não contestaria homenagem à Universidade Patrice Lumumba, de Moscou, onde Botica estudara. Ele negociou a substituição por “Pra não dizer que eu não falei de flores” do Vandré, desde que fosse mantida a rima de “Já” com “Valoá”. Mas o caldo entornou: o ditador de turno, general Geisel, mantinha férrea censura ao “Caminhando e Cantando”.
A ideia do panfleto tecnológico realmente inexequível – desculpem o palavrão – foi abandonada e trocada por santinhos exequíveis. Botinelly retornou anos depois como candidato a deputado com o lema: “Pau neles, companheiro”. Se vivo, defenderia hoje a democracia ameaçada.
Basta de bosta
O candidato que te chamou de “Bosta” disse em 1999 – está gravado – que “o Brasil só vai melhorar quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, fazendo o que o regime militar não fez em 1964, matando uns 30 mil, começando com o FHC. Inocentes morrerão, tudo bem, em qualquer guerra morre inocente”. Entre os mortos poderia estar teu pai, o saudoso senador Arthur Virgílio Filho, que combateu a ditadura e foi cassado, em 1969, pelo AI-5, que o teu candidato quer agora reeditar.
A nota oficial por ti assinada, em 2020, dizia que aquele que te chamou de Bosta “gostaria de reviver a ditadura que nos massacrou”, mas que “daqui a pouco mais de dois anos, o país estará livre de tão diminuta e mesquinha figura, cúmplice de tantas mortes causadas pelo Covid 19”.
Agora, tua foto ao lado do Coiso dá meia-volta-volver e me faz te devolver a pergunta que fizeste há dois anos: “Como alguém pode, sem se desmoralizar, conviver com uma pessoa dessa baixa extração” que “não tem mais a mínima condição de governar o Brasil?”
Meu amigo Arthur, cadê o tribuno inteligente e sagaz, o polemista rápido no gatilho de quem tantas vezes divergimos, mas cujas qualidades admiramos? Formador de opinião, você não pode contribuir para fortalecer o fascismo, a tortura, a devastação ambiental, o colapso do clima, o incêndio da floresta, o envenenamento dos rios pelo garimpo, a matança de indígenas, a extrema desigualdade social, o racismo, a homofobia, a misoginia, o ódio, a ignorância.
A tua maior derrota, Arthur, não foi perder o Senado para o Omar Aziz, que vai nos representar muito bem. Foi te ajoelhar e ficar de quatro aos pés do Coiso, confirmando assim as palavras dele quando te bostificou. Mostra a ele que você não é um Bosta, Arthur. Os cadáveres das covas coletivas ainda estão quentes. Ainda é tempo de recuar e voltar a ser o que você era, quando os relacionamentos não estavam tão corroídos. Te receberemos de braços abertos.
Na década dos 60, assisti um filme desolador da “nouvelle vague“. Após a explosão de uma bomba devastadora de alto poder destrutivo, o narrador caminha pela cidade em busca das ruínas e observa a inexistência de danos materiais. Descobriu, ao encontrar sua parceira, que o estrago da bomba era ainda maior: dinamitou as relações, destroçou amor, solidariedade, lealdade, alegria. É essa a bomba que nos ameaça. Na opinião do jurista espanhol Baltasar Garzón, a eleição no Brasil “pode condicionar o futuro imediato de toda a humanidade”.
Invoquemos o intrépido Botica lá do céu, para ressuscitar o “panfleto tecnológico”, com um podcast tiktokado, cantando os “Novos Baianos”. Basta trocar apenas uma letra: o “e” pelo “o”.
Música: Besta é tu, bosta é tu, besta é tu, bosta é tu.
Voz populi: Tá na hora do Jair, já ir embora.
P.S. –Essas lembranças vão dedicadas a Valois, Márcio, Aldísio, Stanley e Botinelly (in memoriam), testemunhas dos fatos aqui narrados e que não me deixam mentir. Ou deixam?