De O GLOBO, por Patrik Camporez
Pacientes transplantados correm risco de perder órgãos por falta de remédio
“[Desde o transplante] vivo uma nova vida. Cuido da minha saúde, do meu órgão. Mas, há três meses, estou sem remédio. Estou com muito medo de perder meu rim novamente”
Andrea Carla da Silva, paciente de transplante
Um colapso no sistema federal de abastecimento de remédios ameaça pessoas que passaram por transplante de perderem o órgão recebido. Estão em falta 25 drogas de distribuição obrigatória pelo Ministério da Saúde, algumas delas indicadas para evitar a rejeição do organismo ao órgão transplantado. Moradoras da periferia do Recife, Jaqueline Vilela de Almeida, de 36 anos, e Andrea Carla da Silva, de 41, vivem todos os dias o mesmo drama: não conseguem acesso a medicamentos para tratar seus rins transplantados e temem ter que voltar, nos próximos meses, para a máquina de hemodiálise. Ambas já sentem o órgão mais inchado e o corpo fraquejar de tanto perambular, sem sucesso, pelas unidades de saúde da cidade em busca das drogas que deveriam ser fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O drama das duas é compartilhado, em maior ou menor grau, por 90 mil homens e mulheres de todos os estados do país, segundo estimativas da Associação Brasileira de Transplantados. Documentos obtidos pelo GLOBO junto a secretarias estaduais da saúde revelam que, desde o início do ano, o sistema federal de distribuição de remédios vive um aguda crise de desabastecimento, afetando principalmente os transplantados.
De um total de 134 drogas que são distribuídas obrigatoriamente pelo Ministério da Saúde, 25 estão com estoques zerados, sendo que pelo menos quatro delas são para atender a transplantados, evitando que o órgão recebido seja rejeitado pelo organismo. Uma ação do Ministério Público Federal revela que 30 mil enxertos de coração, rim e fígado estão em risco apenas no estado de São Paulo, por causa do desabastecimento. No último ano, 141 pacientes tiveram rejeição aguda ao órgão recebido devido à falta crônica de medicamentos, apenas em São Paulo, segundo dados do Hospital do Rim. Quatro enxertos foram dispensados recentemente em um único hospital da capital paulista. De acordo com associações que atendem a transplantados, ao menos três órgãos já foram perdidos em Recife e dez em São Paulo. A ação movida pelo MPF alerta o Ministério da Saúde sobre o “risco catastrófico de morte para milhares de pacientes transplantados”. Em decisão tomada no dia 9 de abril de 2019, com base na ação do MPF, o juiz federal Paulo Cezar Duran determinou que o ministério solucione o problema. Por meio de nota, o ministério afirmou que “mantém todos os esforços necessários ao cumprimento da decisão judicial”.
RISCO PARA 30 MIL PACIENTES
Em São Paulo, os medicamentos Micofenolato de Sódio e Tracolimo, essenciais para a adaptação dos órgãos transplantados, não foram entregues pelo governo federal na quantidade demandada, segundo a Secretaria estadual de Saúde. O ministério nega e diz que a distribuição do Micofenolato de Sódio “está regularizada”. Quanto ao Tracolimo, diz que “as empresas contratadas não cumpriram os prazos de entrega”. Segundo oM PF, acrise de abastecimento pode acarretar na “paralisação de transplantes para mais de 30 mil pacientes que estão na fila”. —Como incentivara doação, se o transplantado não tem acessoa remédio senão tem como manter o órgão? — questiona Edson Arakaki,p residenteda Associação Brasileira de Transplantados. Arakaki diz que, depois de o sistema funcionar por mais de 20 anos sem grandes intempéries, acrise na distribuição vem se agravando desde 2017, durante a gestão de Ricardos Barros no Ministério da Saúde. —Naquele momento político, de contingenciamento, o ministro resolveu mudar o sistema de compra. Com isso, começou um momento muito dramático para os transplantados. Atualmente, todo mês falta remédio para este público. As pessoas vivem uma peregrinação para conseguir. As filas nos centros de dispensação são imensas.
MEDO DA ‘MÁQUINA’
O grande temor dos pacientes transplantados é voltar ao estágio anterior ao da recepção do órgão. No caso dos que receberam rins, significa voltar para a “máquina”, como eles se referem ao aparelho de hemodiálise. Andrea Carla conta que fez diálise durante 20 anos, até conseguir, há seis, um órgão na fila de transplantes. —De lá para cá, vivo uma nova vida. Cuido da minha saúde, do meu órgão. Mas, há três meses, estou sem remédio. Estou com muito medo de voltar para a “máquina”, de perder meu rim novamente. Andréa tomava o Tracolimo, que atualmente está em falta em todos os estados. Como nunca conseguia acesso ao remédio, o médico receitou outra fórmula, que também começou a faltar. Ela devia tomar outros dois remédios regularmente contra a rejeição, mas ambos também estão em falta há cinco meses.
É o mesmo drama vivido por Jaqueline. Sem tomar regularmente os remédios há cinco meses, ela conta que está com os exames de urina alterados e seu rim, recebido de um doador morto, já começou a parar de funcionar, segundo diagnóstico médico. — Tenho muito medo de voltar para a “máquina”. É um procedimento muito difícil.