Alianças cruzadas

(*) Gaudencio Torquato

Eleição no Brasil deixou de ser aula de civismo para se transformar em luta esganiçada pelo poder. E a razão vai além da observação de que a política substituiu o escopo aristotélico de missão a serviço da polis pela meta de servir de escada de ascensão pessoal. O fato é que o acervo da política se esgarçou na névoa do tempo.

Ademais, a economia é quem dá hoje o rumo das coisas, trazendo a política para sua esfera e, por conseguinte, motivando os representantes do povo a usá-la como investimento. O bem estar coletivo continua a enfeitar um discurso matizado por meia dúzia de conceitos, entre eles, a inserção das massas à mesa do consumo, o resgate de direitos individuais, a justa distribuição de renda e a maior aproximação entre as classes sociais, situações que incorporam padrões de vida consentâneos com a dignidade humana. Este é o tônus ideológico da atualidade.

Por mais que a pletora de partidos brasileiros – quase 30 – se esforce para expressar especificidades, o sumo que se extrai do liquidificador partidário aponta para esse composto, mescla dos ideários da social-democracia e do liberalismo social. Siglas que defendem o socialismo nos moldes que antecederam a queda do Muro de Berlim, o fazem mais por retórica do que por convicção.

Por aqui, há forte dose de consenso sobre o que se pode chamar de sistema liberal-capitalista sob controle do Estado. Os admiradores do “capitalismo à moda chinesa”, com intervenção rigorosa do Estado, não chegam a ameaçar.

Essa é a essência do nosso discurso político. Que não frequentará o palco eleitoral porque o eleitor não se motiva com abstrações. Portanto, veremos uma pregação mais adjetiva e menos substantiva, uma expressão menos ideológica e mais centrada em perfis.

Os atores, claro, deverão fazer pontuações em certas áreas, ressaltando aspectos de programas, tentando colar seu ideário às diretrizes que marcam o estágio de desenvolvimento do país. É pouco provável vermos a federalização dos pleitos, a tentativa de puxar a força da administração federal para o palanque local.

No tabuleiro municipal, são mais adequadas as peças da micropolítica, coisas que dizem respeito ao cotidiano: transportes, educação, saúde, saneamento, moradia etc. Nas capitais, grandes e médias cidades, pode-se, até, prever abordagem mais generalista, amplificada pela tuba de ressonância de mídia mais poderosa.

Se o país andar tranquilo até as margens eleitorais, ou seja, preservando o animus animandi dos contingentes periféricos, a partir de dinheiro no bolso, acesso ao consumo, colchões sociais, inflação controlada etc., os candidatos patrocinados pelo rolo compressor governista poderão ser beneficiados. Massas carentes prezam o status quo e demonstram gratidão escolhendo candidatos com ele identificados.

Há, porém, o outro lado. Em Estados de alta densidade eleitoral, como SP e MG, os dois maiores contingentes eleitorais do país, governados por tucanos, os largos estratos médios tendem a ser mais críticos em relação ao governo federal. Com administrações bem avaliadas, esses governos estaduais poderão se contrapor à onda situacionista que puxará as candidaturas da aliança federal.

Dito isto, convém arrematar: o pleito de outubro juntará grupos contrários e aproximará clássicos contendores. Sobre o palanque do blábláblá assemelhado, subirão candidatos de alianças exóticas jamais vistas por estas plagas.

Traduzindo: o partido A apoia o governo federal, é contrário ao governo estadual, mas se unirá, na eleição municipal, ao partido B, que é contrário à administração federal; este partido B, em outros municípios, poderá trocar o samba do crioulo doido, fazendo parcerias com candidatos de outras siglas, algumas contra, outras a favor dos governos federal e estadual; já o partido C terá apetite para comer metade desta salada mista, fechando com o A, de um jeito, com o B, de outro, e até reciclando a mistura com o D, a quem caberá inverter os papéis de acordo com suas conveniências.

Em suma, o país verá uma campanha de conveniências. Os entes partidários farão extraordinário esforço para turbinar suas máquinas, preparando-as para a decolagem do pleito de 2014, o qual será emblemático: concessão de um ciclo de 16 anos ao mando petista; retomada do poder pelos tucanos; ou ascensão de um terceiro ator ao pódio.

Vejamos as primeiras cenas. O PT abre um leque de articulações, sob a batuta do maestro Lula, que se desdobra para atrair o maior número de aliados em torno de seu pupilo, Fernando Haddad, em São Paulo. A retomada da capital paulista pelo PT parece ser questão de honra (e esforço extraordinário) para o ex-presidente, que se submete a rigoroso tratamento médico. A estratégia petista PT é a de ceder a cabeça de chapa aos candidatos favoritos de partidos parceiros, mantendo, porem, a meta de fazer a bancada mais gorda de prefeitos (projeta 1.500) e alcançar a posição de maior ilha no arquipélago político. A operação não depende apenas de sua vontade.

O PMDB, o aliado principal, não abdica da condição de maior partido brasileiro, o que lhe permitiria ser o fiador do situacionismo. Mas não descarta a alternativa de candidatura própria em 2014. Um olho no norte, outro no sul.

O PSB sonha alto e abre três alternativas: candidatura própria em 2014, continuação da aliança com o PT (reivindicando pedaço maior no bolo) e união com o PSDB de Aécio Neves. O governador Eduardo Campos, que preside a sigla, já confessou o sonho de reunir o grupo pós-64 no comando do país. Ele e Aécio, juntos, liderariam essa estratégia.

O PSDB alimenta o sonho de retomar o cetro, mas faltam-lhe discurso e bases populares. Já o PSD, do prefeito Kassab, ao formar uma bancada expressiva na Câmara, deverá ser um núcleo de aglutinação de atores contrariados em outros grupamentos.

Uma coisa parece certa: os atores sairão do ensaio de outubro sem muitos aplausos das plateias. A política, a cada dia, perde vigor.

(*)  Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação. Twitter @gaudtorquato