No Brasil, os mortos pelo coronavirus já se aproximam dos 65.000, com mais de 1 milhão e meio de infectados. As consequências para as aldeias indígenas são ainda mais catastróficas em decorrência, entre outras razões, da ação predadora do garimpo. A fim de atenuar a nossa dor, sugiro uma breve trégua. Para descontrair um pouco e com isso – quem sabe? – adiar o fim do mundo, relato aqui uma história incrível e bem-humorada de resistência que me foi contada pelo querido amigo Ailton Krenak, com um erro de comunicação, que foi um acerto, envolvendo mineradoras, ministro, governador, empresários, policiais, juízes, tabelião, bispo e o povo Krenak.
Sei que não é possível transpor com êxito uma narrativa oral para o registro escrito, ainda mais com um narrador tão envolvente e performático. Como retratar a gesticulação, a expressão facial ora brincalhona, ora enigmática, a sobrancelha levantada aqui, a variação do olhar sacana ali, as risadas, as pausas, o ritmo, o timbre e as modulações da voz que compõem a costura da narrativa do Ailton? Sem contar a reação de ouvintes fascinados. Além disso, fica a dúvida: será que o que lembro é compatível com o que meu interlocutor lembra ter me contado?
De qualquer forma, sem mais delongas, aqui vai não uma versão ‘fidedigna’ do relato, mas aquilo que recordo e como recordo.
Plantão da Globo
No dia 1º de dezembro de 2005, às 6:00 da manhã, Ailton Krenak dava milho às galinhas, lá na Serra do Cipó, quando soou o telefone. Era o Secretário de Estado do Governo de Minas Gerais, Danilo de Castro, que anos depois – adivinhem o porquê – teve R$ 5,6 milhões em bens bloqueados pela Justiça Federal. Com voz autoritária de deputado federal licenciado (PSDB, vixe vixe), ele indaga:
– Ailton, o Governo quer saber que tribo é essa – [assim mesmo, “tribo”] – que ocupou a ferrovia Itabira-Vitória e não deixa passar os trens com minério.
Não estou sabendo de nada. Vou me informar – respondeu com um sorriso maroto o líder indígena, que não gostou do tom de voz do secretário. Por já ser conhecido nacional e internacionalmente, Ailton havia sido nomeado, em 2003, Assessor Especial para Assuntos Indígenas do Governo de Minas Gerais pelo governador Aécio Neves, que queria fazer média com os índios e com a opinião pública. Só aceitou a nomeação diante do argumento dos velhos Krenak: é melhor um nosso, em quem a gente confia, do que um deles.
Era mesmo melhor e saiba a razão. Ailton perguntou à sua mulher, enquanto coava o café:
– Você está sabendo que movimento é esse?
– Somos nós. Quem está comandando é o cacique Rondon, teu cunhado. A gente não falou antes pra te preservar – ela disse,
Efetivamente, mais de 200 índios Krenak, apoiados por 80 Tupinikim e Guarani do Espírito Santo arrancaram os trilhos e bloquearam a ferrovia da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) que, construída em 1916, passava dentro da Terra Krenak, no município de Resplendor (MG). O resultado foi o desmatamento, a poluição sonora, a contaminação do doce rio Watu, a redução da pesca, doenças, sofrimento e mortes.
Nisso, o telefone volta a tocar. Era o onipresente Danilo. Ailton, ainda escovando os dentes, explicou que se tratava de um movimento do seu povo, os Krenak, acampados na ferrovia. Informou ao secretário que entraria em contato para saber quais eram as reivindicações.
Enquanto isso, o Plantão da Globo – tchan tchan tchan tchaaaan – interrompia a programação para noticiar, em mensagens intermitentes a ação da “tribo” (olha a “tribo” aqui outra vez). As imagens mostravam a fila enorme de trens que não podiam levar o minério ao porto de Vitória, “causando a cada minuto um prejuízo de milhões de dólares para o Brasil”. Leia-se: para a CVRD, aquela mesma multinacional que com a Samarco Mineração S.A. seria responsável, anos mais tarde, pelo desastre do rompimento das barragens, ceifando centenas de vidas.
Cadê o Aécio?
Enquanto isso, Ailton liga para cacique Rondon que informa: os Krenak queriam dialogar com a CVRD para discutir a indenização pelos impactos causados pela ferrovia e pela Usina Hidrelétrica de Aimorés (UHE), mas não queriam falar com funcionários subalternos sem poder de decisão, exigiam a presença no local do presidente da Vale, Roger Agnelli e do governador Aécio para negociar com eles e que enquanto isso não ocorresse a ferrovia permaneceria bloqueada.
Veio o terceiro telefonema minutos depois. O chato do Danilo rugiu desesperado diante da condição imposta:
– Ailton, o Agnelli está em Roma!
– Que vá então o governador – retrucou Ailton
– O governador está em Roma com o Agnelli. Vou enviar o gerente de relações internacionais – disse a voz de um Danilo abespinhado
Ele nem escutou Ailton dizer que não ia adiantar.
O tal do gerente chegou ao acampamento para negociar. Rondon deu ordens aos guerreiros armados com borduna:
– Prendam ele.
Mais tarde, veio um oficial de justiça com ordem para soltar o dito cujo.
– Prendam ele também – decidiu Rondon.
A polícia cercou o acampamento, mas Rondon, lá dentro e Ailton, lá fora, não se intimidaram, afinal eles são herdeiros dos Krenak a quem Dom João VI, declarara guerra oficialmente, em 1808, através de três Cartas Régias. O mesmo rei que, com o rabinho entre as pernas, fugira das tropas napoleônicas, deu uma de corajoso contra os Botocudo armados de arco e flecha.
O bafafá
Outras autoridades menores que tentaram negociar um acordo foram presos pelos Krenak para forçar a vinda de Agnelli e Aécio. Foi o maior bafafá. Enquanto isso, a cada 10 minutos o Plantão da Globo repetia as imagens da fila crescente de vagões paralisados. A cada 5 minutos, o exaltado Danilo pressionava Ailton com sucessivos telefonemas. Foram 58 chamadas no espaço de quatro horas – segundo Ailton, mas sua mulher, boa observadora, contou 63. Na última, um Danilo enfurecido, que era o governador de fato de Minas Gerais, pois Aécio vivia saltitando no Leblon, berra desesperado para júbilo de Ailton:
– A repercussão é internacional. Já está nas redes de TV dos Estados Unidos: NBC, CBS, ABC, Fox. O prejuízo é enorme. A Bolsa de Nova York e o índice Bovespa estão caindo. E agora, o que é que eu faço, Ailton? Com quem eu falo?
– Vai falar com o bispo! – disse Ailton já emputecido, dando aquela resposta que se costuma dar quando não adianta mais reclamar. Bateu o telefone e disse pra mulher: – Não sou mais assessor.
Cinco minutos depois, o azucrinante Danilo telefona e antes que Ailton o mandasse pastar, anunciou:
– Ailton, sua sugestão foi ótima. O bispo aceitou.
Felizmente Danilo, que só sabia ler ao pé-da-letra, consultara o arcebispo de Mariana, dom Luciano Mendes de Almeida, ex-presidente da CNBB, que anteriormente já havia defendido os índios, com veemência, na campanha sórdida do Estadão em defesa das empresas mineradoras. O bispo, antigo aliado, apesar de adoentado – morreria meses depois – topou intermediar o conflito. Foi lá. Atravessou o cordão policial, capengando, devido à recente acidente de carro que o deixou com a perna avariada.
Os Krenak acampados viram de longe, caminhando sobre os trilhos, a figura frágil e minúscula daquele bispo tão destemido e gigante, que eles respeitavam. Expuseram a ele suas reivindicações, que o bispo levou aos diretores da empresa, fazendo-os assinar um acordo registrado em cartório, de que atenderiam todas as demandas, isso na presença de um juiz e dos índios. Depois, num jatinho foram todos a Brasília, para uma longa reunião no Ministério de Minas e Energia, cujo titular era – imaginem – Silas Rondeau da Silva, que deixaria o cargo em 2008, acusado de corrupção.
A negociação foi difícil e se estendeu madrugada adentro. Tentaram desonrar a palavra dada e enrolar os índios na presença do bispo, mas no final os Krenak ameaçaram bloquear outra vez a ferrovia e conseguiram arrancar da miserável CVRD uma indenização que cobria 21 pontos, entre outros, a ampliação do posto de Saúde, a construção de escolas bilíngue e intercultural, a edificação de 55 casas, a construção do centro cultural e de pontes, o financiamento de projetos agrícolas prevendo plantio, piscicultura, captação de águas e outros.
Foi assim que o bispo, beatificado pelo papa, escreveu certo pelas linhas tortas da ferrovia.
P.S. Ailton Krenak, doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora e professor lá em cursos de especialização, me contou essa história três vezes, cada vez por insistência minha. A primeira em Olinda, em 2010, na presença do antropólogo Carlos Alberto Ricardo do ISA e do cineasta Vincent Carelli do Vídeo nas Aldeias. A segunda, no Rio, em 2015, durante seminário internacional promovido pela Unesco e o Ministério da Cultura, diante do escritor e diplomata Gustavo Pacheco. A terceira em Brasília, em 2017, em evento no Memorial dos Povos Indígenas na companhia de Álvaro Tukano e de José Carlos Levinho, então diretor do Museu do Índio. Taí os cinco e o próprio Ailton que não me deixam mentir. Ou deixam? O referido é verdade e eu dou fé.