Por Tereza Cruvinel:
A democracia foi a paixão de Fernando Lyra na política. Hoje, sob o impacto de sua partida, olhando para trás é possível compreender que só a paixão leva um homem a mudar tão radicalmente de tática para alcançar seu objetivo. Foi o que ele fez, e era grato à vida por ter sido vitorioso. “Posso dizer que realizei meu maior sonho”, disse anos depois. Ele ajudou a realizá-lo, para todos nós, porque não temeu o perigo nem hesitou na encruzilhada.
No plano nacional, Lyra desponta em 1970, como deputado federal pelo MDB, depois de ter sido deputado estadual em Pernambuco. Filiou-se logo ao “grupo autêntico” do partido, que fazia uma oposição mais vigorosa à ditadura, denunciando torturas, prisões, desaparecimentos, casuísmos. Com sua voz de trovão, estava sempre na tribuna, bradando contra o “arbítrio”, palavra que apreciava. Nem mesmo os autênticos usavam muito a palavra “ditadura”. Do outro lado, os moderados liderados por Tancredo e Thales Ramalho, sempre preocupados com o humor dos quartéis, recomendando cautela para que não houvesse “retrocesso”. Mas Fernando não era só de tribuna, gabinete e salão verde, embora flanasse pelo Congresso com grande prazer. Ele era das ruas, dos debates onde era possível, estava sempre na UnB e em outras universidades, apoiando os estudantes e outros movimentos de resistência. . Os tempos eram amargos mas ele era bem humorado, irônico, piadista, afetuoso, mordaz. Não perdia piada e era capaz de rir até de si mesmo.
Na luta interna do PMDB, entre as duas alas, era um crítico impiedoso de Tancredo e dos moderados. Achava que, tensionando e acumulando forças é que o MDB derrotaria a ditadura. Acredito que começou a fazer sua transição em 1977, no debate sobre a reforma do Judiciário apresentada por Geisel. Tancredo apelou para que o MDB votasse a favor. Não podiam cutucar a onça com a vara curta. O regime , que prometia abertura, podia recrudescer. Os autênticos teimaram e votaram contra, derrotando a proposta com a ajuda de dissidentes da Arenda. Geisel fechou o Congresso e usou o AI-5 para baixar o pacote de abril: o mandato dos presidentes, ou seja, do general sucessor, seria de seis anos. Um terço do Senado, nas eleições seguintes, quando seriam renovados 2/3, seria composto por senadores biônicos, eleitos indiretamente, garantindo o controle do Congresso pela ditadura. Mas não foi desta vez que ele se rendeu claramente a Tancredo.
A abertura deu novos passos, Em 78, o estrategista do regime, general Golbery, sentindo que a oposição estava mesmo acumulando forças, deflagra uma reforma partidária para dividi-la. A Arena muda de nome e vira PDS. O MDB coloca um P antes da sigla para manter sua identidade. Tancredo e os moderados fundam outro partido, o PP, mas são obrigados a retroceder. O regime impõe o voto vinculado para as eleições de 1982. O eleitor poderia votar apenas em candidatos de um mesmo partido. Pequeno, o PP não teria futuro. Com a reforma, ressurge o PTB, do qual Ivete Vargas se apropriou, forçando Brizola a criar outro partido trabalhista, o PDT. Logo depois surgiria o PT. Em 79, pressionado pelos movimentos da sociedade civil e por greves de fome de presos políticos, o presidente Figueiredo apresenta a Lei da Anistia. Lyra e os parlamentares da vanguarda do PMDB que, ampliada, agora era chamada de “ala progressista”, resistem ao artigo pelo qual serão anistiados tantos os que combateram o regime como aqueles que os perseguiram, mataram ou torturaram. Ele foi um dos que esbravejou mas não tiveram forças para modificar a proposta, o que até hoje impede a punição dos criminosos do regime.
A virada de Lyra acontece em 1982. Neste ano ocorreram as primeiras eleições diretas para governador depois do golpe de 64. O PDS ganha em 12 estados, o PMDB em nove, o PDT no Rio, com Brizola. Mas o regime só ganhou na periferia. O PMDB elegeu Montoro em São Paulo, Tancredo em Minas, José Richa no Paraná, Miguel Arraes em Pernambuco, Pedro Simon no Rio Grande do Sul, por exemplo. Lyra contou, anos depois, que no dia da posse não se programou para ir a Recife, como seria natural. Disse a Márcia, sua mulher. “Vamos a Belo Horizonte, para a posse do governador Tancredo Neves”. Tancredo o convidou para um grande almoço no Palácio das Mangabeiras, ao final do qual, Lyra pôde lhe dizer: “Dr. Tancredo, vim aqui para lhe dizer que o senhor é o meu candidato a presidente”. Tancredo reagiu com um “não me fale disso”. Lutara muito para chegar ao Governo de Minas, não poderia deixar o cargo dentro de dois anos.
Naquele momento, a candidatura só poderia ser de alto risco. Ulysses Guimarães fora anticandidato pelo Colégio Eleitoral, contra Geisel, para marcar posição e denunciar a “farsa” do regime. Em 1978, o PMDB voltou ao Colégio Eleitoral, contra Figueiredo, com a candidatura de um militar, general Euler Bentes Monteiro.
Mas a roda da historia começava a girar com mais velocidade. Em 1983 um jovem deputado eleito no mesmo pleito de 82, Dante de Oliveira, apresenta emenda constitucional propondo eleições diretas para presidente em 1985, quando terminaria o mandato de Figueiredo. Inicialmente não é levada a sério mas Ulysses Guimarães e o alto comando do PMDB abraçam a emenda. As oposições se unem e deflagram o movimento popular pelas “diretas-já”, que promoveria as maiores manifestações de massa do período militar. Ulysses seria o candidato natural se a emenda passasse.
Lyra mergulha na campanha, vai a todos os comícios, arregimenta artistas, integra o comitê de deputados do comando da campanha, combina com entusiasmo suas virtudes de agitador e articulador. Mas já se tornara um interlocutor de confiança de Tancredo e, com outros moderados, sustentava que, se a emenda não passasse, o PMDB deveria participar do Colégio Eleitoral tendo Tancredo como candidato. Moderado, seria assimilado pelos militares se derrotasse o candidato civil do PDS, Paulo Maluf. A emenda não passa, começam as articulações da candidatura de Tancredo. Ulysses e os progressistas inicialmente resistiam mas acabaram se rendendo. “Vamos de nariz tapado”, dizia Ulysses, referindo-se ao “instrumento da ditadura”, o colégio de 694 eleitores, composto por deputados, senadores e representantes da s assembléias legislativas. Lembro-me de Lyra nesta fase, com o mapa do Colégio Eleitoral sobre a massa, marcando cruzinhas nos votos que considerava certos para Tancredo. A vitória foi possível graças aos votos dos dissidentes do PDS que racham com o regime e fundam a Frente Liberal, que indica Sarney como candidato a vice.
Lyra agora era um dos homens fortes de Tancredo, que é operado na véspera da posse e vem a morrer 39 dias depois. Lembro-me dele abatido e atônito no Hospital de Base de Brasília, para onde acorreu todo o mundo político na longa noite de 14 de março.
Sarney, empossado, mantém os ministros escolhidos por Tancredo, mesmo depois de sua morte. Com Lyra, teve alguns conflitos. Lyra o chamou de “vanguarda do atraso”. Cometeu a gafe quando tentava explicar por que o PMDB o escolhera como vice. Fernando Henrique, pouco tempo depois, faz um duro ataque ao presidente e à sua política econômica. “Eu pisei no tomate mas ele pisou no tomateiro todo”, diz o ministro da Justiça, para delícia da crônica política. Sua gestão no Ministério da Justiça foi uma faxina no que ele chamou de “entulho autoritário”. Acabou com o departamento de censura, revogou leis e decretos arbitrários, começou a desmontar os aparelhos repressivos, a implementar mais amplamente a Lei da Anistia.
Saiu em 1986, renovou o mandato e, sentindo-se desconfortável no partido que já não era o mesmo, filiou-se ao PDT. Foi vice de Brizola na campanha presidencial de 1989. A saúde começou a fraquejar. Em 1990, ficou como suplente mas acabou assumindo o mandato e se reelegendo em 1998. Depois, a combinação entre saúde debilitada por cinco pontes de safena e certa decepção com a atividade parlamentar rotineria, levou-o a desistir das eleições. Apoiou Lula em 2002 e foi nomeado presidente da Fundação Joaquim Nabuco, onde fez um belo trabalho de valorização da cultura e da memória política. Filiou-se ao PSB e apoiou a eleição de Eduardo Campos para governador. Os tempos difíceis haviam ficado para trás, os tempos da paixão também. A democracia era uma realidade.
Para mim, como para muitos jornalistas, ele passou de fonte a amigo. Quando ligava, dizia: “É Fernando Lyra, já me esqueceu? “. Da última vez que o vi, em Recife, levou-nos, a um grupo de Brasília, para almoçarmos num restaurante rústicoem Jaboatão. A dona era sua amiga, a comida, maravilhosa. Entre a moqueca e as caipirinhas de pitanga, recordamos os velhos tempos.
Dele, podemos todos dizer o que ele disse de Cristina Tavares, sua companheira do grupo autêntico, no prefácio que lhe pedi para escrever ao perfil biográfico dela que produzi para a Câmara dos Deputados: “Foi esta grandeza interior que se espalhou como uma luz nas trevas, quando a luz era mais necessária. Que rompeu a amargura de tempos difíceis, como um rasgo de esperança. Que se transformou em anúncio permanente de um tempo melhor”.