Acerto de contas: a dívida nula dos Estados

Recebi do Senador Roberto Requião o texto abaixo que republico para a reflexão de todos.

HORA DE VIRAR A MESA E

MUDAR O CURSO DA HISTÓRIA

Por J. Carlos de Assis

Assessor de Economia Política do Senador Roberto Requião

 

Nota Introdutória

RAZÕES DA NULIDADE DA DÍVIDA DOS ESTADOS

 Meu dileto amigo e assessor, José Carlos de Assis, jornalista e economista, apresentou-me há algumas semanas a demonstração surpreendente de que a dívida dos Estados junto à União, especificamente a que resultara de consolidação realizada pelo Governo FHC em 1997, é simplesmente nula. Minha primeira reação foi: “Essa dívida vem sendo paga há quase três décadas. Como só agora você vem me dizer isso?” Os textos a seguir esclarecem as duas coisas, a nulidade da dívida, e o incrível retardamento no reconhecimento dessa nulidade.

Não é segredo para ninguém que os Estados e os Municípios da Federação estão quebrados. Setores essenciais, como saúde, educação e segurança estão sendo sucateados. As prisões vem explodindo em massacres. A sociedade está sendo colocada em risco permanente. Diante do descalabro da economia e da pornográfica expansão do desemprego, a única parte ativa do Governo é a que promove a desestruturação da Petrobrás para privatizá-las em fatias, e a preparação dos grandes golpes encoberto sob a sigla de PPP-Parcerias Público Privadas. Eventualmente, tentam dar de graça às empresas de telecomunicações R$ 100 bilhões!

Por uma coincidência do destino, a salvação da República está na anulação da dívida dos Estados junto à União e no ressarcimento do que foi pago indevidamente, justamente num momento em que a economia requer massas crescentes de investimento público para enfrentar a tragédia da depressão. Em depressão, aconselhava Keynes a Roosevelt nos anos 30, o remédio é investir muito, e de forma deficitária. O mesmo estava ocorrendo do outro lado do Atlântico como obra do grande gênio alemão em finanças, Hjalmar Schacht.

Espero que a leitura desse livreto leve os Senadores da República a refletirem sobre a verdade da situação em que vivemos e os oriente, sobretudo aos não economistas ou não familiarizados com questões econômicas, no sentido de decisões sábias. Pretendo promover o conhecimento da nulidade da dívida, com a aplicação inteligente dos recursos liberados ou devolvidos, por três diferentes vias: a judicial, que é demorada e burocrática; a social, pela mobilização nacional dos setores estaduais atingidos pela carga da dívida, também demorada; e a política, que pode ser imediata, dependendo da vontade e do espírito público dos Senadores da República.

 Roberto Requião

Senador da República

 O efeito da dívida pública nos serviços essenciais dos Estados      

Durante três décadas o Governo Federal impôs aos Estados uma dívida que nunca existiu. Como a essa dívida não correspondia nenhum imposto específico, o orçamento global dos Estados teve de ser acomodado ao longo dos anos para que a União recebesse os pagamentos correspondentes. O resultado foi um achatamento progressivo dos recursos estaduais livres numa trajetória descendente que seria agravada com a depressão econômica nos anos de 2015 e 2016, ameaçando repetir-se em 2017.

A dívida imposta pela União aos Estados e a queda das receitas estaduais estão entrelaçadas no mesmo movimento. Uma dívida que nasce do nada é como um imposto líquido sem contrapartida de produção de bens ou serviços. Seu efeito macroeconômico é contracionista. É fácil verificar isso. Quando se retira da sociedade recursos líquidos, portanto sem contrapartida de gastos equivalentes, haverá menos dinheiro em circulação na economia. O resultado é uma contração do sistema produtivo, recessão ou depressão.

Pode-se alegar que o dinheiro retirado dos Estados, indo para o Governo Federal, eventualmente retorna à economia nacional sob forma de investimentos e despesas públicas federais. Acontece que isso não ocorre. O dinheiro líquido pago pelos Estados vai para uma conta chamada superávit primário que é esterilizada na fornalha financeira improdutiva. Assim, a dívida dos Estados é duplamente perniciosa para as economias estaduais. Tira capacidade de pagamento deles e ao mesmo tempo promove uma contração global.

As consequências desse processo perverso não são visíveis a olho nu no curto prazo. É um fenômeno de médio e longo prazos. No curto prazo os governadores apenas notam que os orçamentos disponíveis estão encolhendo ano a ano. Pensam que é culpa de seu sistema tributário. Na prática, são obrigados a reduzir investimentos e cortar serviços públicos. Com esse objetivo reduzem os gastos com saúde, com educação, com segurança pública e… com presídios. É dessa forma que a crise nos presídios se liga à extorsão da dívida.

A matança de presidiários no norte do país suscitou o aparecimento de vários abutres que estão se cevando da carne daqueles que foram selvagemente mortos. Ministério Público e Justiça disputam entre si quem dá mais ordens desbaratadas, ora mandando presidiários para a maior segurança de um presídio, ora mandando trazê-los de volta também por conta de segurança, ora convocando a Guarda Nacional e até mesmo a Força Armadas para serem guardiões das prisões, tudo numa dança grotesca de troca de responsabilidades que simplesmente mascara o fato de que, depois de décadas de descaso, não há como resolver o problema presidiário em dias sem investimentos e tempo, e sobretudo sem uma nova política presidiária que envolva também a reforma do sistema prisional por parte do Poder Judiciário.

Em grande parte, tendo em vista a política penitenciária promovida pelo Judiciário de entupir os presídios com presos também de baixa periculosidade, a crise penitenciária brasileira é função direta também da crise financeira dos Estados, pois não há recursos para se construírem presídios em número suficiente para atender à demanda. Já a crise financeira dos Estados é função direta da dívida impagável e nula que lhes foi imposta pelo Governo Fernando Henrique, e mantida nos governos seguintes, até o atual. A imposição da dívida foi uma exigência do FMI e do Banco Mundial para dar suporte à reestruturação financeira dos Estados dentro do figurino neoliberal. A imposição do FMI e do Banco Mundial decorreu da promoção do Estado mínimo dentro do grande projeto de globalização financeira a fim de abrir espaço para o setor privado explorar lucrativamente serviços públicos, inclusive de água, como está sendo feito justamente agora na “negociação” de Meirelles com Pezão.

Quem não quiser ou não souber fazer essas relações não passa de objeto de manipulação da grande mídia, cúmplice voluntário ou involuntário do projeto neoliberal. É espantoso que, diante de uma brutalidade inominável como a que aconteceu e pode continuar acontecendo nos presídios, a figura patética de Meirelles pretende impor ainda maiores restrições financeiras aos governos estaduais, já estrangulados nos orçamentos. O momento era de união nacional para atacar um problema terrível de curto prazo. O que de fato acontece é um teatro mambembe no qual a desgraça alheia serve para alimentar vaidades.

Veja esse ministro da Justiça: no meio do incêndio anuncia um plano de longo prazo para reduzir os homicídios de mulheres. Cá pra nós. É uma perda de senso de proporções. O que esse plano tem a ver com a crise imediata? Ah, sim, está enviando a Força Nacional e as Forças Armadas para as regiões críticas. Lamentamos pela Guarda Nacional e pelas Forças. Não foram feitas para isso. Acabarão tendo que optar entre matar ou morrer, acrescentando mais um elemento caótico numa situação conflagrada, e atraindo a antipatia da sociedade. É, pois, a sociedade que tem de pensar numa saída. O senador Requião e eu estamos pensando. Começa pelo reconhecimento da nulidade da dívida dos Estados, o que poderá lhes dar condições financeiras imediatas para construir e humanizar presídios.

É importante assinalar que a dívida dos Estados, que é uma extorsão líquida, pode indiretamente, doravante, por sua nulidade, resolver os problemas financeiros estaduais e os problemas de desenvolvimento do país se for tratada adequadamente a partir de um grande pacto político, de forma imediata. Quando foi criada, em 1997, pelo Governo FHC, representava R$ 111,18 bilhões em valores atuais. Foram pagos, ao longo de quase três décadas, o equivalente a R$ 277 bilhões. E, pelas contas dos supostos credores, restam a pagar nada menos que R$ 476 bilhões.

Se for reconhecida como nula, pois está sendo paga duas vezes pela sociedade – sendo uma vez intermediada pelo Governo Federal, na origem, e outra intermedia pelos Governos estaduais, ambas pagas pelo mesmo cidadão contribuinte -, vai sobrar dinheiro para aplicação imediata num grande programa de investimentos e ampliação de serviços públicos dos Estados numa escala jamais vista. É que, no mesmo ato em que seja considerada nula, terá de ser estipulado o ressarcimento aos Estados pelo que foi pago indevidamente, ou seja, R$ 277 bilhões. Somando o que deixará de ser pago, serão R$ 753 bilhões para financiar o grande projeto keynesiano de desenvolvimento através dos Estados e Municípios brasileiros que temos defendido para o Brasil, inspirados em Roosevelt e Hjalmar Schacht.

A contrapartida disso, em termos macroeconômicos, é altamente benéfica para a economia e para a sociedade. Se for acertado, por exemplo, que o ressarcimento será parcelado em cinco anos, isso significará R$ 55,4 bilhões por ano, algo como 10% do custo anual da dívida pública federal que cresce sem qualquer contrapartida de financiamento de investimento e de gastos em serviço público. Tecnicamente, deve ser considerado também, com o reconhecimento de nulidade da dívida, o efeito financeiro do que deixará de ser pago à União, pois vai entrar dinheiro novo no caixa dos Estados se a economia retomar.

Em síntese, o que poderemos fazer, a partir da nulidade da dívida dos Estados junto à União, é o financiamento de um projeto espetacular de desenvolvimento brasileiro em estilo tipicamente keynesiano. Um empresário com quem conversei a respeito só fez uma sugestão: que o programa seja executado no nível mais próximo do cidadão, o município, estreitando as distâncias entre governo e povo. Claro que isso pode ser feito. E em caráter de emergência. Os governos estaduais estão estrangulados financeiramente. Na medida em que deixem de sê-lo, poderão articular programas comuns com os municípios, tudo condicionado a uma liberação imediata de recursos da dívida nula pelo Governo Federal. Aí não serão apenas os presídios que poderão ser reestruturados. É todo o serviço público essencial, sem privatização.

Entretanto, não é um governo qualquer que poderá implementar um programa desse tipo. Ele requer credibilidade e deve inspirar confiança da população. Tanto dinheiro mobilizado para investimentos do setor público não pode passar pelo risco de ser aplicado através da velha estrutura corporativa do Estado com que temos convivido nos últimos anos e décadas. O corporativismo que cria privilégios e redutos de aproveitadores tem que ser combatido com vigor ainda maior que o do combate à corrupção.

Salários nababescos nas estruturas do Executivo, do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público devem ser extintos e submetidos ao teto máximo comum mediante uma firme e regeneradora intervenção legislativa que os depure de seus excessos. Claro que isso não se confunde com a fúria privatista da dupla Temer/Meirelles e de seus asseclas no Planalto. Mas é preciso, sim, resgatar o Estado em setores essenciais, pois não faz sentido submeter esses serviços, como água, eletricidade e comunicações, assim como prisões, à lógica fria do mercado que é orientado para o lucro, não para o bem-estar da população.

 

José Carlos de Assis

Economista Político