Por Ribamar Bessa:
A pergunta, feita agora na Alemanha pelos governantes da reunião de cúpula do G20, já havia sido a manchete da edição de junho do Vossa Senhoria – “o menor jornal do mundo” (3,5 x 2,5 cm), segundo o Guiness. Criado em 1935 pelo jornalista Leônidas Schwindt, em Goiás, o jornal nanico, que cabe na palma da mão, foi relançado em agosto de 2016 pelo engenheiro Milton Nogueira na Festa Literária de Divinópolis (MG), inaugurando sua nova fase, agora com 26 páginas em português e 4 em inglês. Ou seja, até Donald Trump, se gostasse de jornais e não fosse iletrado, podia lê-lo.
O Vossa Senhoria, “jornal crítico e combativo que brigava com o prefeito, o padre e o dono do armazém”, tirava 2.500 exemplares e se mantinha “com anúncios do elixir de Nogueira para sífilis e do vinho creosotado Silveira pra bronquite”, nos conta Juliana Sayuri na bela matéria da Ilustríssima (O ‘Times’ de Divinópolis FSP 25/06). Sua última manchete e o fato de ter sido rodado até março de 1949 em Abaeté (MG), me lembrou episódio ocorrido no Chile, em 1970, com exilados brasileiros. Peço permissão para contá-lo.
Entre os muitos exilados, dois eram mineiros de Abaeté. Um era Tarcísio, o Capitão América. O outro era Ângelo Cruz, o Anjinho, cuja família vivia da pecuária leiteira e era parente – ele dizia – de Alberico de Souza Cruz, que anos mais tarde envergonharia o jornalismo brasileiro editando de forma facciosa o debate Collor x Lula na TV Globo. Os dois cidadãos de Abaeté ignoravam-se mutuamente, talvez porque nasceram em margens opostas do caudaloso rio Marmelada que corta a cidade. Tarcísio, o poliglota, na margem esquerda, e Ângelo, o monoglota, na direita.
A velha ponte de madeira que ligava as margens do rio não foi suficiente para unir os abaeteenses no exílio. Tarcísio jamais disse palavra sobre Anjinho, mas este último, rancoroso, contou que na infância de ambos ele era apontado por dona Feliciana, mãe de Tarcísio, e por um tal de Chico do Estevão como “má companhia” a ser evitada.
A língua de Aécio
Quando chegou a Santiago de Chile, por não falar espanhol, Anjinho teve sérios problemas de comunicação, apesar de as duas línguas serem tão próximas. Os chilenos não entendiam muitas palavras do idioma de Camões bastante diferentes como lixo que é basura, bolsa de estudo – beca, alfaiate – sastre, paletó – saco, endereço – dirección, aposentado – jubilado, careca – pelado, pires – platillo, canhoto – zurdo, chá – té, rua – calle, garfo – tenedor, faca – cuchillo, jornalista – periodista, calça – pantalón e assim por diante.
Num dia, uma família chilena solidária convidou um grupo de exilados brasileiros para tomar uns vinhos em sua casa próxima a Calle Michimalongo, na comuna de Maipú, onde ficava a pensão que nos abrigava. Naquela noite memorável, foram abertas muitas garrafas de Santa Carolina Cabernet Sauvignon. Anjinho encheu os cornos. Bebeu todas. Já cheio da troaca, com a voz pastosa, pediu:
– Preciso de um talher para comer o presunto.
Os chilenos nada entenderam. Ele apontava a mesa, gesticulava falando alto como se isso ajudasse a compreensão. Repetia, inconveniente, expelindo perdigotos: – “Talher. Talher”. Diante do olhar atônito de seus interlocutores, especificou: – “garfo e faca”.
Piorou. A dona da casa, muito cerimoniosa, pediu desculpas e respondeu que não havia entendido bulhufas. O titiriteiro Euclides Coelho de Souza, que era ali o brasileiro que mais dominava o idioma de Cervantes, traduziu no seu espanhol impecável, sem sotaque:
– Señora, mi amigo pide, por favor, un cubierto para comer el jamón.
O equívoco produziu gargalhada geral. Anjinho achou que estavam gozando a cara dele e, considerando que nenhum chileno entendia mesmo o português, para fazer gracinha com os brasileiros ali presentes, berrou na língua do Aécio Neves:
– Se não trouxerem logo o talher, eu vou cagar nessa bosta, uai.
Fez-se, então, um silêncio sepulcral e constrangedor. Euclides se aproximou do ouvido do Anjinho e falou baixinho:
– Rapaz, bosta é diferente, mas cagar é igual nas duas línguas. Sai de fininho.
A língua de Temer
Eis o que eu queria dizer. Michel Miguel Elias Temer Lulia agiu como o Anjinho ao contestar no artigo “Heresia Jurídica” (Folha SP 06/07) as graves acusações do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, sobre os fortes indícios dos crimes de corrupção passiva. Temer se borrou todo, se entregou. Não respondeu nenhuma das 82 perguntas substantivas da polícia federal sobre a mala com R$ 500 mil pagos pela JBS a Loures, silêncio sobre a combinação do pagamento de R$ 38 milhões em parcelas semanais e sobre a viagem no jatinho do empresário em 2011. E quer que a gente aceite o que fala. Mas a gente sabe que cagar e roubar é o mesmo, tanto no Planalto quanto na planície.
Em vez de explicar porque se reuniu no porão do Palácio Jaburu, na calada da noite, com alguém que ele passou a chamar de “bandido”, responde às acusações substantivas com uma enxurrada de adjetivos, desconsiderando que elogio em boca própria é vitupério: “Sou homem público probo e digno com uma imaculada trajetória política”, “não respondo as perguntas da polícia porque são ofensivas à minha dignidade”, “as acusações são inócuas, abjetas e caluniosas”, “absurdas e inaceitáveis”, “a peça acusatória é inepta”.
Inepto e inócuo é meu olho esquerdo. Se o Vossa Senhoria traduzisse ao inglês o artigo do Temer, os dirigentes do G20 saberiam que presidente tem o Brasil. Lá Temer mostra o que é: um incapaz, um enrolão, com tendência acentuada a receber propinas. Ele deve explicações não é só à Policia Federal, mas a toda nação.
Compartilhamos a náusea de Rodrigo Janot diante de espetáculo tão deprimente de corrupção deslavada. O nojo aumenta ainda mais, quando ouvimos as “explicações” sobre as trapalhadas vergonhosas dadas por Temer e pelo senador Aécio Neves, que tratam como débeis mentais a 200 milhões de brasileiros. Os dois deviam seguir o conselho que Euclides deu para Anjinho, com outro verbo para não afetar ouvidos pudibundos: “Todo mundo já entendeu. Peçam pra defecar e saiam de fininho”.
P. S. O Tarcísio e o Euclides, dois amigos queridos, existem. Um vive na Holanda e o outro em Curitiba. A história aconteceu mesmo, taí eles que não me deixam mentir. Ou deixam? Já o Anjinho é pseudônimo, uma licença poética.