Por Sandro Vaia
A torrente de lama desce das encostas e soterra quase 400 vidas.A cena se repete todos os anos, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos mortos. Os rios saem do seu leito, invadem as casas e os telejornais de janeiro ganham a emoção natural que no resto do ano os repórteres e os animadores de auditório que se travestem de jornalistas se esforçam para criar.
Em São José do Vale do Rio Preto a televisão gravou a sequência símbolo da temporada 2011 de tragédias: a pobre senhora que agarrada a seu cãozinho tenta salvar-se da fúria das águas e que, para sobreviver e ser içada pelas cordas por seus vizinhos, perde o seu animal de estimação para a torrente descontrolada que o leva embora.
As tragédias anunciadas e repetidas cansam a retina e embotam a sensibilidade das pessoas.Pais chorando a perda dos filhos, filhos chorando a perda dos pais, famílias chorando a perda de suas casas, das suas memórias e das suas pequenas riquezas,remetem sempre à mesma questão: mas por que? De quem é a culpa?
Os políticos sairão da lassidão de suas férias, sobrevoarão a morte com seus helicópteros e farão a cara compungida dos grandes dramas e repetirão as promessas de todo janeiro, que começarão a se esvair em fevereiro e que estarão já enterradas em março, e voltarão a ser lembradas quando tudo começar de novo.
O povo é solidário, corre a juntar tralhas,cobertores,remédios,roupas velhas e forma grandes correntes para mandar tudo para as vítimas.Alguns espertalhões desviarão coisas pelo caminho, e o ser humano reafirmará a sua saga de alternar ,nas grandes tragédias,a sua natureza da generosidade mais sublime e seus instintos de egoísmo mais sórdido.
Na imprensa e nas chamadas mídias sociais,como o twitter, os espertalhões ideológicos sempre saem correndo a anunciar a sua lista de culpados e a execrar os inimigos de fé, a quem gostam de atribuir os males do mundo, até o momento em que a chuva lhe cai pelas costas e eles são obrigados a engolir de seu próprio veneno, traídos pela tempestade contra-hegemônica.Mas a chuva só é neoliberal em alguns casos, em outros é apenas descontrole divino, obra da Ira de Deus.
Quando o sol sair e os rios voltarem aos seus leitos e as casas começarem a ser reerguidas, as encostas perigosas e proibidas voltarão a ser usadas como moradia, os entulhos voltarão a entupir as galerias e os rios, as verbas voltarão a ser contingenciadas , os políticos continuarão fingindo que não estão vendo nada , até que as águas do próximo verão eliminem mais algumas vidas, as vozes voltem a tagarelar a sua indignação e a vida continue seu curso natural de tragédias, destruição e morte.
Afinal, quem é que vai saber separar o que é fatalidade do que é incompetência política, humana,administrativa e gerencial, a não ser Deus ? E ele nunca estará disponível para dar entrevistas coletivas e contar quem é o verdadeiro culpado.
Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.. E.mail: svaia@uol.com.br