A TOCA DE JESCO PUTTKAMER: O SABOR DO ARQUIVO

A TOCA DE JESCO PUTTKAMER: O SABOR DO ARQUIVO

Quem poderia imaginar que seria possível encontrar tantas maravilhas naquele lugar no qual você redescobre o prazer de entrar? Lá, você admira danças cadenciadas por versos improvisados em várias línguas indígenas. Lá, ouve cantos de amizade, de guerra, de pesca, da lua cheia, do timbó, da mandioca, do buriti. Desfruta músicas tradicionais ao som de maracás, além de hinos evangélicos e até mesmo canção de Waldick Soriano na voz de um índio suruí. Escuta poesia, narrativas míticas, discursos de lideranças e conhecimentos de sábios indígenas sobre a flora, a fauna, o mundo.

Lá, você pode curtir mais de 130 mil fotografias, assistir filmes, ler cartas, consultar 180 diários de campo e outros documentos manuscritos com o registro do contato de índios com a sociedade nacional na segunda metade do séc. XX. Enfim, lá você penetra no universo indígena, como Alice na toca do coelho transportada para um imaginário povoado de sonhos, mas também de pesadelos.

Vale de lágrimas

Essa “toca” fica em Goiânia e guarda o acervo do fotógrafo e documentarista Jesco von Puttkamer (1919-1994), considerado o precursor da antropologia visual no Brasil. Nascido em Niterói, filho de um barão alemão com uma brasileira, ele percorreu, ao longo de 40 anos,  centenas de aldeias indígenas e construiu umas das mais completas coleções audiovisuais etnográficas, documentando diferentes comunidades indígenas, não apenas aquilo que deslumbra e seduz, mas também as tentativas de destruí-las e a resistência organizada à barbárie.

O acervo doado à PUC/Goiás, sob a guarda e conservação do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), abarca quase todos os aspectos de mais de 60 culturas indígenas: agricultura, artesanato, caça, pesca, arquitetura, saberes tradicionais, culinária, ritos, humor, língua, todo tipo de manifestação artística, sistemas de classificação de animais e plantas.

Mas nem tudo é maravilha. Nas aventuras narradas por Lewis Carroll, Alice passa por crise de identidade causada pela perda da habilidade de recitar poemas, sofre, chora tanto que cria um lago de lágrimas. Na toca de Jesco, esbarramos também no lado obscuro das relações do mundo de fora com os povos indígenas.

A documentação registra os resultados dos projetos desenvolvimentistas dos governos Vargas e JK e depois da ditadura militar, a violência contra os índios, a invasão de seus territórios por madeireiros, mineradoras, garimpeiros, colonos, pecuaristas, a corrupção e a omissão dos órgãos oficiais, os massacres genocidas, o envenenamento de crianças, as epidemias de gripe, os surtos de malária e sarampo, mas também o protagonismo dos índios com suas reivindicações, tudo aquilo que é silenciado pela história oficial do país.

Guardo ainda a lembrança viva da visita breve, mas frutífera, aos arquivos de Jesco Puttkamer, em abril de 2011, na companhia do xamã guarani Wherá Tupã, ambos guiados pela antropóloga Marlene Moura, por ocasião da Semana dos Povos Indígenas, organizada pela PUC-Goiás. Suas coleções haviam sido premiadas pelo Ministério da Cultura –  IPHAN e pela UNESCO. Sai de lá com uma série de dúvidas e de perguntas, cujas respostas estão discutidas agora no livro Memória das Imagens – Olhares multiculturais sobre o Acervo Jesco Puttkamer, organizado por Marlene Moura e Sibeli Viana com lançamento programado para este mês de abril.

Chave de arquivo

O livro nos dá chaves para abrir as portas do arquivo, ao avaliar as coleções através de olhares qualificados de 15 pesquisadores, alguns dos quais acompanharam Jesco em expedições à área indígena, como o amazonense Mário Arruda, nascido em Codajás (AM).  Eles contaram com a contribuição de interlocutores indígenas que qualificaram o material do acervo, identificaram personagens, reconheceram eventos, classificaram adornos, instrumentos e utensílios, confirmaram localizações, recuperaram memórias, num processo similar ao já adotado pelo Museu do Índio no Rio de Janeiro.

De nada adianta ter milhares de documentos importantes se não contamos com instrumentos de pesquisa para consultá-los. Os índios foram chamados para dentro dos arquivos, entre eles o cacique Raoni, e lá dialogaram com as imagens de Jesco e com as memórias atuais, tendo suas narrativas acopladas às suas imagens e sons e inseridas no Sistema de Gestão da Informação Media Portal. Ou os arquivos foram até eles em exposições fotográficas nas aldeias. Foi construída uma base de dados documentais digitalizados e informatizados sobre a história de quatro povos: Metyktire (Txukahamãe), Paiter Suruí, Cinta-Larga e Nambikwara.

Além da assessoria dos índios, os autores do livro que tive o prazer de ler usaram os diários de campo de Jesco para analisar as inter-relações entre os diferentes registros do material etnodocumental, classificado com base em princípios avançados da arquivologia. Eles conseguem compartilhar o prazer pela descoberta e identificação do documento, como a foto do Raoni jovenzinho, nos permitindo compreender melhor a historiadora francesa Arlette Farge, em O Sabor do Arquivo”:

“Quem tem o sabor do arquivo procura arrancar um sentido adicional dos fragmentos de frases encontradas. A emoção é um instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio”. Ela nos adverte, no entanto, sobre a dúvida e a impotência de não saber, às vezes, como usar o documento, além dos inúmeros riscos que podem interferir diretamente na qualidade da escrita da história.

Os olhares sobre o acervo de Jesco focaram a documentação de povos cuja importância é inversamente proporcional ao seu peso demográfico. Se a “toca de Jesco” contivesse registros relacionados exclusivamente à história indígena, seu valor já seria inestimável, porque “a memória de uma nação pequena não é menor do que a de uma nação grande” – como escreve Franz Kafka em seus Diários (1911). Contudo, ela é relevante para a história do Brasil, acendendo uma luzinha de esperança num país tão combalido e adoecido como o nosso.

Para Raoni, citado no livro, “foi muito bom ele [Jesco] ter doado este material para a PUC”, que dessa forma dá uma decisiva contribuição para “repensar, de forma crítica, tanto o passado quanto o futuro dos povos indígenas” como queria o historiador John Monteiro, de saudosa memória, que nos ajudou a redescobrir o sabor do arquivo.

P.S.1 – MOURA, Marlene e VIANA, Sibeli: Memória das Imagens: Olhares multiculturais sobre o Acervo Jesco Puttkamer. Goiânia. Editora Espaço Acadêmico. 2018.

Os demais autores que aparecem nos quatro capítulos são:

Capítulo 1: ETNOGRAFIA DO POVO METYKTIRE

Vanessa R. Lea-  Os Metyktire Mebngokre

Bepró Metyktire: Os líderes indígenas tradicionais e a luta pela terra

Maria Eugênia Brandão A. Nunes: Jesco e os acervos indígenas: os Metyktire da aldeia Porori

Fernanda Elisa Costa P. Resende: Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer: a participação do povo Metyktire

 

Capítulo 2: ETNOGRAFIA DO POVO PAITER SURUÍ

João Carlos Gomes e Joaton Suruí: Povo Paiter Suruí: Resistência, lutas e conquistas

Mário Arruda: Jesco e os acervos indígenas: os Paiter Suruí

Roque de Barros Laraia: Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação do povo Paiter Surui

 

Capítulo 3: ETNOGRAFIA DO POVO CINTA-LARGA

João Dal Poz: Notas etnográficas sobre os Cintas-largas da

Amazônia Meridional

Mário Arruda: Jesco e os acervos indígenas: os Cinta-Larga

Celiomar Rodrigues, Marlene C. Ossami de Moura e Sibeli A. Viana:

Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação do povo Cinta-larga

 

Capítulo 4: ETNOGRAFIA DO POVO NAMBIKWARA

Maria Aurora da Silva e Dulce Madalena Rios Pedroso

Registros Etnográficos sobre o povo Nambikwara

Fernanda Elisa Costa P. Resende:  Jesco e os acervos indígenas: os Nambikwara

Marlene C. Ossami de Moura, Cristiane Loriza Dantas e Sibeli A. Viana:

Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação povo nambikwara

 

P.S. 2 – Duas dissertações defendidas nesta semana se relacionam com o tema, uma delas de autoria de um índio Tupinikim:

1) RODRIGO WALLACE CORDEIRO DOS SANTOS. Pioneiros e duendes: desenvolvimento e integração da Amazônia a partir dos filmes documentários de Jean Manzon – PPGCom – Universidade Federal do Pará. Banca: Ivânia Neves (orientadora), Otacílio Amaral Filho (UFPA) e José R. Bessa (Unirio-Uerj).

2) JOCELINO DA SILVEIRA QUIEZZA Políticas de Línguas em área Tupinikim: o caso da aldeia de Caieiras Velha Aracruz-ES – Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas. Museu Nacional UFRJ. Banca: Consuelo Alfaro (orientadora), Beatriz Protti Christino (UFRJ) e José R. Bessa (Unirio-Uerj).