A Saga do Senado: de quem é o voto fraudulento?

São 81 senadores. Mas apareceram 82 cédulas na urna para eleger o presidente do Senado no último dia 2.  Um senador preencheu duas cédulas de votação. Qual deles? A fraude veio acompanhada de futrica, bate-boca, briga e agressões, que marcaram a disputa voraz pelo cargo. Ameaçado por Tasso Jereissati (PSDB-CE) de ir para a cadeia, Renán Calheiros (PMDB-AL) desafiou:

– Seu merda, venha pra porrada. O responsável por isso é você, coronel, cangaceiro.

O Brasil inteiro testemunhou cenas degradantes transmitidas pela TV, mas ninguém reagiu ao delito, que aumenta a descrença na política. Não houve protesto indignado sequer de um solitário batedor de panela contra a lata de lixo do país em que transformaram o Senado da República. A mutreta e a baixaria viraram normalidade. Ninguém se escandaliza mais. “É briga de lavadeira” – disse um dos presentes ofendendo as lavadeiras.

A Corregedoria Parlamentar jura que vai investigar quem é o autor do 82º voto, que pode ser qualquer senador, aliás muitos deles encalacrados em inquéritos de corrupção, inclusive o presidente eleito e seu concorrente. Depois de analisar o caso, o corregedor terá duas alternativas: encaminhar o processo à Comissão de Ética para punir o responsável ou arquivá-lo. Ganha uma viagem à Urucurituba de barco-recreio, com tudo pago, incluindo merenda com bolacha de motor, quem acertar o encaminhamento que será dado.

Se querem mesmo apurar os fatos, sugiro que busquem a chave do mistério no bairro de Aparecida, em Manaus, porque lá já ocorreu, num tempo mítico, tudo aquilo que acontece e ainda vai acontecer no planeta. Por isso, consultamos o correspondente do Taquiprati no Beco da Bosta, Rubem Rola, que depois de ler o Baú Velho do saudoso Carlos Zamith, confirmou fato similar na eleição ocorrida em abril de 1954 para a diretoria da SAGA – Sociedade Atlética Guarda de Aparecida, que reunia os jovens do bairro com o objetivo de preservar os valores cristãos.  Foi assim, se não me falha a memória e ela anda falhando ultimamente.

Fraudulent vote

A paróquia de Aparecida, desde 1943 sob o cuidado espiritual dos padres redentoristas americanos, tentou durante dez anos congregar os jovens do bairro nas atividades pastorais. Sem sucesso. Na hora da missa, novenas e catequese, os meninos e rapazes preferiam ficar batendo bola no Campo do Hore. Até que, vindo de Oconomowoc, Wisconsin, chegou um sacerdote alegre e pintoso, com sorriso encantador de John Kennedy, corte de cabelo e topete de Elvis Presley. Era o padre Cristóvão Farrell, encarregado da Pastoral da Juventude. Ele jogou iscas que os jovens morderam.

Sua primeira medida foi construir uma quadra de esportes e formar equipes de futebol de salão, basquete e vôlei, cujo acesso só era permitido aos que se confessassem no sábado e comungassem na missa dominical. A igreja ficou até o tucupi de gente. Nunca se pecou tanto, aos borbotões. Nunca se comungou tanto. Em consequência, a quadra também ficou lotada. Formaram-se vários times e organizou-se campeonatos nas três modalidades. A coisa cresceu com tal intensidade que o padre Cristóvão criou a SAGA para agrupar a rapaziada, promovendo a eleição para a primeira diretoria da associação.

Competiram dois grupos. A Chapa 1, da rua Coronel Salgado, vinha com Edir para presidente. A Chapa 2, da rua Gustavo Sampaio, era encabeçada por Olavo Paixão. Foi um pleito acirrado, com disputa voto a voto de cada um dos 146 eleitores, mas na apuração verificou-se que havia 147 votos. Alguém se equivocou?  Quem era o eleitor clandestino?

Foi quando o padre Cristovão tentou apaziguar os ânimos aplicando a lógica do sistema eleitoral dos EUA. Lá, quem recebe mais votos em cada Estado, leva todos os delegados. Dessa forma, Donald Trump ganhou a eleição, embora no cômputo geral tenha tido menos votos do que Hillary Clinton. Foram esses os critérios aplicados na eleição da SAGA, substituindo-se os estados por ruas e becos do bairro.

Cangalhas

Aparecida é um bairro tradicional no centro de Manaus, denominado antes da chegada dos americanos de Bairro dos Tocos, por causa das árvores cortadas na sua ocupação. Possui quinze ruas e treze becos que tinham nomes sugestivos como Chora-Vintém, Pau-Não-Cessa, Saco-do-Alferes (nada a ver com o dito cujo de um conhecido radialista), cantados pelo poeta Luiz Bacellar com sua frauta de barro. O candidato que tivesse a maioria dos eleitores de um beco levava a totalidade dos votos daquele beco. O perdedor, mesmo sendo votado, ficava sem nenhum. Dessa forma, a Chapa I foi declarada vencedora, embora com menos votos individuais no total.

A diretoria empossada logo criou um time de futebol de salão com o nome de SAGA, que foi várias vezes campeão, com Lebreia no gol, Baixote, Edir e seus irmãos Kisso e Luizinho, vestindo o uniforme de camiseta rosa e calção azul. A chapa derrotada criou o SATMA da família Paixão, que usava camiseta azul e calção rosa: Toinho, Olavo, Zé Arthur, Mário e Mundiquinho. Os dois uniformes hoje deixariam a ministra Damares ainda mais alucinada. Saía faísca no embate entre as duas equipes, porque permanecia na lembrança a fraude cometida nas eleições.

Mas afinal, quem cometeu a fraude?  O padre Cristóvão explicou que podia ter sido uma manifestação do “earling vote” do sistema eleitoral americano que permite votar antecipadamente pelo Correio. No entanto, O Jornal publicou foto de Fernando Folhadela que, com sua potente câmera sanfonada inglesa marca Houghton, flagrara o votante não inscrito. A foto, embora embaçada, mostrava a figura imprecisa, mas indiscutível, do Cangalhas, falecido anos antes, cuja alma presa à Terra não conseguira se desligar do seu corpo e da vida que levara como jogador.

Morto vota?

Era o “dead’s vote”, um voto qualificado que expressaria a vontade de um morto, campeão pelo Nacional Futebol Clube em 1922, cujo espírito vindo do além se manifestara eleitoralmente. Morto pode votar? Num sistema contaminado pela fraude, mortos votam. Foram mortos de espírito que elegeram Flávio Bolsonaro (PSL/RJ), investigado pelo Núcleo de Combate à Corrupção do MPF. Daqui a mil anos, se ainda existir Brasil, os cariocas chorarão arrependidos por esse voto vergonhoso que elegeu Flávio no lugar de Chico Alencar (PSOL/RJ). A diferença é do esgoto para a água cristalina.

Já na recente eleição para presidente, não havia qualquer diferença entre Renan Calheiros e Davi Alcolumbre, ambos afogados na lama. Nenhum país do mundo merece ter representação tão desqualificada política, moral e intelectualmente. No Império, O Velho Senado descrito por Machado de Assis não era flor que se cheirasse, mas também não era uma lata de lixo fedida com embusteiros e trapaceiros, que colocam em risco a democracia, porque desacreditam as formas de representação popular e matam as esperanças coletivas.

Vai ver o 82º voto – dead’s vote – foi do Cândido Viana, Marquês de Sapucaí, presidente do Senado do Império de 1851 a 1853, o precursor do Cangalhas. Com as folhas corridas de Flávio Bolsonaro, Antonio Anastasia e Sérgio Petecão na mesa diretora do Senado, além de Collor de Mello, Jader Barbalho, José Serra, Eduardo Braga et caterva não tenham dúvidas: Queiroz será o próximo senador pelo Rio. Basta comprar votos, chorar arrependido e enxugar a remela com a bandeira do Brasil.

P.S. – E o ministro do STF Gilmar Mendes, hein? Ele protestou contra os auditores fiscais da Receita Federal que abriram procedimento para identificar “focos de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência”  dele e de sua mulher Guiomar Mendes. Deu na revista VEJA.