Marcelo Déda, governador de Sergipe, ao sair de reunião, no Ministério da Fazenda, em que se discutiam mudanças na legislação do ICMS, comentou de forma perspicaz e bem-humorada: “não tentem negociar conosco, como se fôssemos crianças capazes de serem levadas por um pirulito”.
Tem razão o governador nordestino. Quase sempre, propostas visando reformar o sistema tributário brasileiro subestimam seu impacto nas relações de poder construídas no ambiente federativo.
O federalismo fiscal se estrutura a partir da competência de cada ente federativo, da partilha de renda e seus respectivos critérios de rateio. Subsidiariamente, por transferências voluntárias oriundas de dotações orçamentárias, dentre as quais se salientam as denominadas emendas parlamentares.
Ainda que guarde alguma consistência técnica, a definição dessa estrutura de poder tem fundamento essencialmente político. Alterações relevantes somente ocorrem quando balizadas por um presumido objetivo de descentralização fiscal, o que, ao fim e ao cabo, significa aumento de transferências federais para Estados e Municípios, não raro com exigência concomitante de aumento da carga tributária.
A titularidade dos tributos segue, grosso modo, modelo instituído na Constituição de 1946. Foi a fidelidade a esse modelo que explica a titularidade estadual do ICM (hoje ICMS), entendido como sucedâneo do extinto Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC).
Tal fato, em desacordo com o que se fez em todos os países do mundo que optaram por uma tributação do consumo com base no valor agregado, é também explicável à medida que os formuladores da reforma tributária de 1965 não seriam capazes de avaliar os efeitos perversos dessa imprópria titularidade, uma vez que essa forma de tributação só era praticada na França, onde inexiste federação.
A partilha de recursos seguiu parâmetros quase estritamente políticos, em que se reconhece uma tendência para descentralização fiscal.
Em 1967, deduzidas as transferências para Estados e Municípios, a União detinha 88% da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Hoje, esses percentuais estão reduzidos a 52% e 42%, respectivamente, daqueles impostos.
Com o objetivo de mitigar disparidades inter-regionais de renda, as transferências para o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e para o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) eram, em princípio, proporcionais ao tamanho da população e da área territorial e inversamente proporcionais à renda per capita.
No FPM, entretanto, são reservados 10% para as Capitais e 3,6% para os Municípios com população igual ou superior a 156.216 habitantes; no FPE, desde a edição da Lei Complementar nº 62, de 1989, foram estabelecidos coeficientes fixos de partilha, presumidamente em caráter provisório, que, entretanto, até hoje estão em vigor.
A lógica desses percentuais encontra explicação tão somente no entrechoque de forças políticas, cujos movimentos são, em tese, legítimos.
É essa mesma linha de raciocínio que esclarece a transferência para Estados e Municípios de 29% do produto da arrecadação da contribuição de intervenção econômica (CIDE) incidente sobre combustíveis ou a destinação para aqueles mesmos entes federativos de 10% da arrecadação do IPI com o objetivo de compensar virtuais perdas no ICMS, decorrentes da imunidade tributária que alcança os produtos manufaturados exportados.
A destinação para os Estados de parcela dos royalties decorrentes da exploração do petróleo, instituída pela Lei nº 2004, de 1953, foi claramente uma forma de lograr apoio dos governadores à campanha do “Petróleo é Nosso”.
De igual forma, a extensão dessa regra, em virtude da Lei nº 7.525, de 1986, para o petróleo extraído da plataforma continental foi um caminho para socorrer financeiramente Estado do Rio de Janeiro, que à época se queixava de esvaziamento econômico.
A plataforma continental é um bem da União, conforme estabelece o art. 20, inciso V, da Constituição, daí porque foi necessária a instituição de imaginativos critérios, como as projeções ortogonais geodésicas, para associar a produção extraída da plataforma a Estados e Municípios.
A guerra fiscal do ICMS, inequivocamente qualificada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, também pode ser vista como um exercício, conquanto ilegítimo, de poder político dos governadores.
Sem nenhum juízo de valor, a verdade é que esses fatos moldaram o federalismo fiscal brasileiro e, em consequência, fixaram padrões de gastos para as entidades federativas. É imprudente formular propostas tributárias que desconheçam essa realidade. Preferencialmente, deve-se evitar confrontá-la.
Abre-se, todavia, uma rara janela de oportunidade: as receitas adicionais que advirão da exploração do pré-sal e as decisões do Supremo quanto à inconstitucionalidade dos critérios de rateio do FPE e da guerra fiscal do ICMS. Trata-se de tema que reclama iniciativas urgentes, observado que incluir ingredientes adicionais é patrocinar a crise.
Para que essas iniciativas tenham sucesso, são indispensáveis liderança técnica do Governo Federal e maior protagonismo do Congresso Nacional e dos Estados. Não se deve esquecer, entretanto, que a matéria é essencialmente política e, portanto, transita em um território onde a ingenuidade não sobrevive.
Bom-senso, habilidade e capacidade de transigir fazem parte do jogo; pirulitos, não.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal