Noite de sábado (05/02). Duas vizinhas bebiam umas cachacinhas num boteco do bairro Cidade Nova, Zona Norte de Manaus, batendo um animado e escorregadio papo “baba-de-quiabo”. Eis que por volta das 23h30, já cheias do aço, como se diz em amazonês, começaram a berrar e a trocar palavrões. Auxiliadora Vasconcelos dos Santos, 38 anos, se levantou e, chirrada, caminhou cercando frango até a sua casa ali perto. Retornou com uma faca e enfiou-a no tórax de Deborah Lima Senna, 40 anos, que morreu.
Motivo do crime: a vítima teria corrigido o “português errado” da assassina, segundo o delegado Cícero Túlio. Pedi a dois sobrinhos jornalistas que moram em Manaus para apurarem qual foi o “erro”. O veterano Fábio, ex-reporter de jornal e TV, me sacaneou: “Não faço a menor ideia, mas preciso descobrir, porque minha vida pode estar em risco e eu nem sei”. O iniciante Gabriel Kokai me disse que o Boletim de Ocorrência feito no 19º Distrito Integrado da Polícia (DIP) não registrou qual foi esse “erro de português”.
Segui a dica do Gabriel e acionei a Assessoria de Comunicação da PM que, após consultar o delegado Ricardo Cunha, titular da Delegacia de Homicídios (DEHS), me respondeu por e-mail (09/02), informando a apreensão pela polícia de “duas facas na residência da infratora”:
– “Mais informações não podem ser repassadas para não atrapalhar as investigações em andamento”.
Depois de sete semanas, desconheço se as investigações já foram concluídas. Sem resposta à minha pergunta, me permito fazer um exercício de imaginação com base nas variadas formas de falar do amazonense e no ensino da gramática, chamada de “dramática” com muita propriedade pela minha sobrinha neta Heleninha, que inicia agora sua escolaridade.
Pupa da canua
Mas afinal o que a Auxiliadora falou que mereceu a correção? Talvez Déborah tenha estudado em uma das quatro escolas estaduais próximas ao bar, o local do crime, onde pode ter aprendido a “dramática” normativa, que determina como deve ser falada uma língua, com base na norma-padrão ensinada nas escolas junto com preconceitos. É essa “dramática” que caga regras, estabelecendo o que é certo ou errado, com critérios ideológicos e moralistas, que acabam servindo para ostentar poder e prestígio.
Imaginemos que Auxiliadora, antes de morar em Manaus, viveu em Borba, no rio Madeira, que seria sua terra natal. Nas falas do interior do Amazonas costuma ocorrer a passagem de um som linguístico para outro, o chamado alçamento vocálico, caracterizado pela migração de uma vogal média (/e/, /o/) para uma vogal alta (/i/, /u/) num processo fonológico estudado por Maria Sandra Campos em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Ulha já esse minino sentado na pupa da canua”.
Supunhetemos que Auxiliadora disse: “eu cumpro se tu me vender”. Deborah, então, debochou publicamente da vizinha, chamando-a de burra. Exerceu o insuportável papel de xerife da língua que lhe ensinaram na escola, ignorando o que disse Saramago, prêmio Nobel da Literatura: “Existem várias línguas faladas em português”, nenhuma melhor que a outra. A “dramática” normativa erra ao julgar “errado” tudo o que contraria a norma padrão e ao discriminar as legítimas variedades populares, que têm suas regras e não prejudicam a compreensão.
Milhões de brasileiros, que chegam à escola falando conforme as regras da variedade popular, são humilhados, ridicularizados e reprimidos. Na sala de aula, aprendem a se envergonhar do seu jeito de falar e nem sempre se apropriam, em tais condições adversas, da norma padrão necessária para uso em espaços públicos e para o exercício da cidadania. É claro que o deboche da vítima motivado por sua santa ignorância não justifica o seu assassinato. Por que matar alguém por um motivo aparentemente tão banal?
Tesão de matar
No artigo “O tesão de matar” (FSP-08/02/2022), Álvaro Costa e Silva constata que “O Brasil se destaca como campeão de homicídios no mundo. Mais do que fazer justiça com as próprias mãos, instalou-se o desejo de eliminar o outro. O tesão de matar virou estilo de vida. Ricos colecionam fuzis e fazem terapia em clubes de tiro. A classe média usa pistola. Pobres vão de faca, paus e pedras e são ao mesmo tempo algozes e vítimas do linchamento geral”.
Quando o MEC adotou em 2011 o livro “Por uma vida melhor”, da coleção VIVER, APRENDER, sua autora Heloísa Ramos esclareceu as diferenças entre fala e escrita, destacando a variação como uma das características da fala. Ela foi linchada publicamente por defender o respeito que a escola deve ter ao jeito de falar do aluno, que varia de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. Esse ambiente acolhedor é pré-condição para aprender a norma padrão impropriamente denominada de norma culta, posto que todas normas refletem cultura.
Na época, em 2011, o jornalista Merval Pereira, que acabava de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, reagiu como Deborah, condenou o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC com alegações preconceituosas:
“Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.
Lula, felizmente, não tem tesão de matar. Merval não foi esfaqueado, apesar de sua santa ignorância ser grave pelo lugar que ocupa hoje como presidente da ABL e que reforça preconceitos. Mas ele fez escola em favor da “dramática” normativa. Sua colega na GloboNews, Cecília Flesch, zombou da fala de Lula por ter ele falado “adevogado”, recebendo resposta demolidora do jornalista Benedito Costa em carta a ela endereçada, que viralizou:
– “Grande parte dos falantes do Sul usam a epêntese no caso de “advogado”, assim como em grande parte do país se fala “peneu”. Incluindo você”.
Dramática Normativa
Epêntese é o acréscimo de um ou mais fonemas ao interior de um vocábulo, como na fala de Bolsonaro, o rei das “rachadinhas”, quando diz que no Brasil não há corrupição. Ele põe aquilo que seu ex-ministro Sérgio Moro retira, ao se referir ao “cônjuge” num processo inverso denominado de síncope. Nem Moro, nem seu ex-chefe podem ser chamados de “burros”, não por causa disso. Não seria problema falar assim no recesso do lar ou num bar. A mancada foi uma autoridade, que deve conhecer o registro formal da língua, repetir três vezes “conge” numa fala oficial no Congresso Nacional.
No seu livro “Preconceito Linguístico”, que é hoje uma referência, Marcos Bagno mostra como a linguagem popular, por razões ideológicas e políticas, foi sempre estigmatizada como sendo uma “mutilação” da “verdadeira língua”, quando podemos ser multilíngues nas “várias línguas faladas em português”. O curioso é que quem discrimina ignora muitas vezes o registro formal que diz defender. Afinal, o importante é combater a “corrupição”, respeitar o “conge”, verificar se o “adevogado” tem inscrição na OAB. É preciso desarmar a “dramática” normativa, para que ela não continue humilhando e matando.