A gênese do Estado federal brasileiro: algumas marcas de federalismo

Por Alexandre Navarro*

A implantação do federalismo, assemelhadamente a outras formas de organização administrativa e jurídico-políticas adotadas pelo Estado brasileiro, ontem ou hoje, deve ser examinada no contexto histórico, econômico e social em que foi plantado. As experiências brasileiras vêm, no mais das vezes, apresentadas de fora para dentro, sob o argumento de receitas prontas, aplicáveis a qualquer instância nacional.

Encampada a construção de um Estado federal nativo, desde meados do século XIX, sua substância é retirada da Constituição Americana de 1787, a partir de modelo composto por Estados-membros independentes, regramentos próprios e o instituto da “repartição de competências, ponto central do federalismo e pressuposto da autonomia dos entes federados (Cf. BERCOVICI, 2001), assuntos tratados nos artigos de Alexander Hamilton, James Madison, sobretudo, e John Jay, posteriormente dispostos na obra “Os Federalistas”.

Santos (2004) lembra que a edição “é de tal importância que a Suprema Corte Americana ainda hoje usa como fonte para interpretação da Lei Constitucional”. Para a retórica nacional da época servia com instrumento de cisão conquanto, como prática a ser adotada, servia pouco, apesar de ter contado com vários dispositivos na Constituição de 1891.

Ao lado das propostas construídas durante a Convenção Nacional Constituinte da Filadélfia, registradas no texto constitucional americano, uniam-se, no Brasil, abolicionistas, positivistas, embrenhados nos cursos de formação técnica da Escola Militar, iluministas (Revolução Francesa), liberais de toda ordem (autônomos, fazendeiros e funcionários públicos) e militares cacifados pela vitória na longa Guerra do Paraguai (1864-1869) e imbuídos do espírito agregador de Nação. Nas idiossincrasias coletivas da opinião pública perpassava o sentimento de atraso frente à evolução de países latinos e da “Grande Nação do Norte”, a partir de meados do século XIX.

De outro lado, sem força para prover estruturas sócio-políticas de check and balance, termo do trio americano, para expressar equilíbrio em entre poderes, um império para lá de enrijecido em suas estruturas públicas, sem sistema partidário e um cansado Poder Moderador, incapazes, todos eles, de atender às demandas de cafeicultores paulistas e da crescente classe média urbana, inobstante recuperação econômica por meio da produção cafeeira, principal produto de exportação brasileiro, após longa recessão. Dom Pedro II, alienado dos problemas nacionais, se segurava em um parlamentarismo às avessas.

Enquanto na Inglaterra o Legislativo nomeava o primeiro-ministro, no Brasil o Imperador escolhia o Conselho dos Ministros e, ao mesmo tempo, o destituía. O liberal Góis e Vasconcelos havia sido por três vezes consecutivas, de 1862 a 1868, presidente do Conselho. A renovação de quadros políticos – seja em forma ou consistência representativa -, ou de formas administrativas mais equilibradas, inexistia.

O próprio imperador titubeava na defesa de sua administração e em sua convicção imperial: “Eu sou republicano. Todos o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a República para ter as glórias de Washington”, frase esta usada, quando da proclamação, pelo marechal Deodoro da Fonseca para convalidar o golpe republicano e enfrentar, como menos dor, sua devoção ao Imperador e gratidão ao Império. Bueno (2003) lembra a amizade pessoal do marechal por Dom Pedro II: “Devo-lhe favores”.

Com fim da Guerra da Secessão, nos Estados Unidos (1861-1865), já incrustado pelos espíritos federalistas de Hamilton, Madison e Jay, e em crescente industrialização, o ingrediente abolição passa a ser, se não a locomotiva da inquietação, um item agregador na dialética entre Império e República. Olhando à nossa volta, apenas Brasil e Cuba ainda mantinham, nas Américas, essa excrescência humana.

Nossos vizinhos argentinos e chilenos nos faziam inveja, a partir de um acelerado processo de implantação da infra-estrutura urbana, ampliação de estradas, expansão de cidades, inauguração de cafés, apresentações de artistas e intelectuais ingressos pelo processo migratório, cenas bem ao gosto europeu, além de indicadores econômicos e sociais, desde lá, muito superiores aos brasileiros.

Embora o caráter golpista tenha sido creditado a militares, certamente, e, sem direito a este crédito, pelo menos como grupo central, à igreja – “questão religiosa”, encadeada pelo chamado “conflito entre o trono e o altar”, disputa corriqueira provocada pela prisão, por ordem de Dom Pedro II, dos bispos de Olinda e do Pará, contrários a aproximação entre maçonaria e religião, é certo que sem a participação dos oligarcas paulistas, consolidados em 1873, sob a forma do Partido Republicano Paulista (PRP), a proclamação de 1889 não teria ocorrido, pelo mesmo não por aquela hora.

Sobre a relevância dos militares nessa passagem de regime, Faoro (2007), comparando-a com a revolução militar-civil de 1964, diz que as rupturas de 1964 ou de 1989 se devem, “em maior parte, pelo papel das Forças Armadas dentro do país. Excluído, para efeito de raciocínio, o Exército, a República decerto viria, mas não vira como veio”.

Do Manifesto Republicano de 1870, redigido por Quintino Bocaiúva, documento que apresenta os ideais do PRP, falam os paulistas ao Brasil: “Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência e sua prática, antinomica (sic) e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos” (VALLADARES, 2009).

Essa insurgência paulista, buscando sua institucionalização, efetivada com a criação do PRP, já era plantada desde a abdicação ao trono por Dom Pedro I, em abril de 1831, e inauguração do período das Regências.

Composto por latifundiários e quadros da burguesia cafeeira, o grupamento repisava, a partir dos latifundiários do “oeste novo” de São Paulo, os pressupostos republicanos com o viés federalista, desde a vacância de Dom Pedro I: “descentralização, maior autonomia provincial e uma nova política de empréstimos bancários” (BUENO, 2003).

Nessa lacuna, a Regência que era Trina, virou Una, e, pelo Império, sem um comando central, permeado pela insegurança da cafeicultura ante a uma imposição da volta de Dom Pedro I ao trono, a partir de um mesmo status quo, pipocavam revoltas provinciais, cada qual visando à constituição de um Estado republicano apartado do país: Farroupilha (1835-1845) – instauração da República Rio-Grandense; Sabinada (1837-1838) – República Bahianense; e Praieira (1848-1849) – República de Pernambuco.

Valladares (2009) resume: “muitos movimentos, com ou sem a participação popular, precederam a proclamação da República. Quase todos se inspiraram no Iluminismo e na Independência dos Estados Unidos para contestar o poder imperial”.

Era de se concluir que, num quadro social deste, Deodoro, herói maior do Exército brasileiro, e Benjamim Constant, com o apoio de republicanos civis, ao cabo de quase três décadas, transformassem o regime brasileiro em República, sem um único “tiro que pudesse revelar que se tratava de um golpe e não de uma parada militar” (BUENO, 2003).

Até o mais reticente em relação ao golpe, não tão engajado como Deodoro, que tinha o Imperador como credor de favores, Floriano Peixoto, marechal ocupante do posto de general-ajudante do Exército de Dom Pedro II, foi convencido de que não era uma resposta ao Imperador e sim às investidas contra os militares, impedidos de professar defesa e falar de assuntos políticos por meio da imprensa – “questão militar”, que já se arrastava desde 1883, e aderiu: Enfim, se a coisa é contra os casacas, lá em casa tenho ainda a minha espingarda velha…” (LUSTOSA, 2009).

Assim nasce a República brasileira, a 15 de novembro de 1889, sob os auspícios do federalismo, disposta a “organizar o Estado e suas instituições de acordo com a transformação política ocorrida” (FERNANDES, 2009), em sua segunda época constitucional, após a Constituição Política do Império de 1824.

Dessa segunda época, a Constituição de 1981 reconheceu o Estado federal (art. 1º), com todas as conseqüências daí advindas: organização política estadual, inclusive com a existência de Assembléias dos Estados e o reconhecimento de autonomia de governo e administração (art. 5º), domínio público estadual (art. 64 e §§), competência estadual local inclusive de natureza tributária (art. 9º), e o controle de constitucionalidade (art. 59, § 1º, b), um sutil instrumento de controle concentrado das iniciativas locais estaduais, conquanto manifesta prevalência federal (Cf. JOBIM et al, 2007), bem ao estilo do instituto de “freios e contrapesos” (check and balance), esquema que “assegura a presença de múltiplos filtros dentro do processo de tomada de decisões políticas: por um lado, tais filtros dificultam a aprovação de leis apressadas; por outro, favorecem a possibilidade de que as mesmas se enriqueçam com novos aportes” (GARGARELLA, 2006).

Como lembra Canotilho (2003), ao estudar a técnica americana da liberdade, “a conseqüência lógica do entendimento da constituição como higher law é ainda a elevação da lei constitucional a paramount law, isto é, uma lei superior que torna nula (void) qualquer lei de nível inferior, incluindo as leis ordinárias do legislador, se estas infringirem os princípios constitucionais”.

Sobre esse passo, registra Bonavides (2005) a alteração do eixo de valores e princípios de organização formal do poder:

“Os novos influxos constitucionais deslocam o Brasil constitucional da Europa para os Estados Unidos, das Constituições francesas para a Constituição norte-americana, de Montesquieu para Jefferson e Washington, da Assembleia Nacional para a Constituinte de Filadélfia e depois para a Suprema Corte de Marshall, e do pseudoparlamentarismo inglês para o presidencialismo americano”.

Nessa ambiência, nasce, também, o federalismo brasileiro, governado por poucos e para poucos, com marcas federalistas. Com todas as mudanças de rota elencadas por Bonavides pelo menos a Bandeira brasileira não copiou o pendão americano, primeira proposta para o Brasão feita pelo novos republicanos. Venceram – menos mal – os positivistas de Augusto Conte, com o lema “Ordem e Progresso”, sobreposto à bandeira da monarquia, e re-arrumação das estrelas já existentes naquela.

De 1889 a 1929, sem mudança nenhuma de eixo, apenas marcas, “o regime republicano foi permeado por um sistema que unia o governo aos grupos econômicos e políticos influentes em uma rede de clientelismo. No caso, um governo de grandes proprietários de terras e de seus interesses” (FERNANDES, 2009).

Aquele federalismo de Hamilton, Madison e Jay foi ajustado para servir, tão somente, às oligarquias, num Estado esquadrinhado por municípios dominados por coronéis controladores tanto do processo eletivo como de seus consequentes, o Legislativo e o Executivo. Sobre essa ponte Faoro diz que “da abertura não nasceria o regime democrático, mas uma nova minoria, com o agravante de se constituir de parvenus – os lugares do teatro são limitados, embora não numerados”.

Esse quadro só começaria a mudar a partir de 3 de novembro de 1930, com a chegada de Vargas ao poder. Foi o fim da fazenda brasileira, e o início da construção de um verdadeiro Estado brasileiro, estruturalista e nacional, sem bicos de penas.

O próprio caráter federalista, com marcas aqui e acolá, está em processo. Há que se observar de que não há forma diversa para se adotar políticas ou modelos, seja quais forem, sem olhar a realidade histórica e as idiossincrasias sociais e econômicas próprias e alhures. Receitas prontas devem ser recebidas com muita parcimônia, e doses adequadas de check and balance.

We the People, sempre.

(*) Secretário Executivo do Ministério da Integração Nacional

BIBLIOGRAFIA

BERCOVICI, Gilberto. “Separação de poderes” no Estado federal norte-americano. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Editora do Senado Federal, ano 38, nº 150, abr-jun 2001, pp. 225-230.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2. ed. rev. São Paulo: Ática, 2003.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direto constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003.

FAORO, Raymundo (org. Fábio Konder Comparato). A República inacabada. São Paulo: Globo, 2007.

FERNANDES, Jorge Batista. Estado a procura de uma identidade. Revista História Viva. ano VI, nº 73, 2009, pp. 46-49.

GARGARELLA, Roberto. Em nome da constituição. O legado federalista dois séculos depois. En publicacion: Filosofia política moderna. CLACSO, Centro Latinoamericano de Ciências Sociales, DCP-USP, Departamento de Ciências Políticas, Universidade de São Paulo, 2006. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/08_gargarella.pdf, acessado em 30 out 2009.

JOBIM, Nelson et all (org. Maria Helena Wechmann). As Constituições Brasileiras. São Paulo: FAAP, 2007.

LUSTOSA, Isabel. O primeiro golpe militar do país. Revista História Viva. ano VI, nº 73, 2009, pp. 40-45.

SANTOS, Paulo R. Federalismo: origem e fundamentos. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Porto Alegre: Procuradoria da Informação, Documentação e Aperfeiçoamento Profissional. v. 28, nº 60, jul-dez 2004, pp. 67-79.

VALLADARES, Eduardo Montechi. A monarquia cai de madura. Revista História Viva. ano VI, nº 73, 2009, pp. 34-39.