Por Ribamar Bessa:
– Quero ser freira – disse para sua mãe, dona Getúlia. O physique du rôle ela já tinha, faltava apenas a Congregação. Escolheu a das Irmãs Franciscanas Bernardinas com sede no Rio Grande do Sul. Isso foi em 1979, quando tinha 14 aninhos e vivia em Vila Lindóia, bairro de Curitiba. O pai Júlio, apavorado, brecou o ingresso da filha no convento. Não fosse isso, a Pastoral Indígena e o CIMI contariam com a militância da irmã Gleisi, que teria acumulado experiências e conhecimentos capazes de conferir, hoje, legitimidade ao seu discurso sobre os índios.
Mas ela perdeu qualquer legitimidade quando sepultou definitivamente a freira natimorta que simpatizava com a teoria da libertação. Com ela, enterrou também a líder estudantil, ex-presidente da União Metropolitana dos Estudantes de Curitiba que militou no PCdoB com o codinome de Rosa Luxemburgo, antes de se filiar ao PT. Pariu, em seu lugar, alguém que, embora sem entender bulhufas, pontificou nesta semana sobre os índios como se fosse renomada especialista. O corpo é o mesmo da ex-quase-freira, mas outra é a alma que traiu os princípios pelos quais sempre lutou.
A alma é da pré-candidata ao governo do Paraná, em 2014, Gleisi Helena Hoffmann, atual ministra da Casa Civil, que já está em plena campanha. Na última quarta-feira, ela foi convocada para a sessão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara de Deputados, numa manobra da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que é uma espécie de bancada evangélica do agronegócio. Obrigada a comparecer, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade, não resistiu às pressões dos ruralistas. Entregou o ouro aos bandidos.
Durante mais de seis horas, os bandidos atacaram a Funai e exigiram a suspensão das demarcações das terras indígenas. Ao invés de defender o governo federal, ao qual pertence, Gleisi afinou seu discurso com eles e anunciou que vai alterar as regras. Criticou também a Funai, órgão responsável pela delimitação, e se comprometeu a apresentar até o fim do semestre novo procedimento, que prevê a intervenção da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Agrário na definição das terras indígenas.
As raposas exultaram com a função a elas atribuída de cuidar do galinheiro. No caso do Paraná, a Embrapa já havia elaborado um laudo sobre 15 processos demarcatórios em curso, recomendando sua interrupção, com o argumento furado de que os ocupantes daquelas terras, em alguns casos não são índios de verdade, e em outros, a ocupação não é suficientemente antiga para justificar a delimitação de terras. A recomendação foi acatada nesta semana e os processos de delimitação de terras indígenas no Paraná – reduto político de Gleisi Hoffmann – foram todos suspensos.
Para não pensarem que está legislando em causa própria, a ministra da Casa Civil explicou que estudos referentes à ocupação de terras em outros estados foram solicitados à Embrapa, que já produziu relatório sobre as ocupações de índios em Mato Grosso do Sul, entregue à Casa Civil, com o mesmo argumento fajuto de que se trata de ocupação recente. Entusiasmados, os deputados presentes fizeram novos pedidos, que foram anotados pela ministra.
Desta forma, Gleisi Hoffman atropela o Ministério da Justiça e engrossa a campanha orquestrada recentemente em todo o território nacional pelo agronegócio que, de um lado, no Congresso Nacional, busca atentar contra os direitos constitucionais dos povos indígenas e, de outro, açula a opinião pública contra os índios, mantendo inclusive um blog com esse objetivo. Foram os ruralistas que mobilizaram mais de mil pequenos e médios empresários – alguns deles domingos, outros afifes – que aos gritos de “Demarcação, não. Sim à produção”, vaiaram discurso da presidenta Dilma em Campo Grande (MS).
Desta ofensiva radical faz parte a tentativa de instalar uma CPI da Funai proposta pelo deputado Moreira Mendes (PSD-RO, vixe, vixe) com o objetivo de questionar os critérios usados nas demarcações. Criaram até um Movimento Contra a Demarcação da Terra Guarani de Morro dos Cavalos (SC) que fez camisetas com a inscrição “CPI da Funai Já!”.
O objetivo é criar pânico em determinados setores da população, semeando desinformação para retirar a simpatia com a qual parte da opinião pública vê os índios, como vem ocorrendo em Santa Catarina, onde o agronegócio continua divulgando que se a reivindicação dos índios em Morro dos Cavalos for acatada, entre 5.000 a 10.000 guarani virão do Uruguai, Paraguai e Argentina “para ocupar terras do Brasil”. Eles apelam para o terrorismo midiático:
– “Quanto vale a sua propriedade? Sua liberdade? O seu sonho? A água pura que você bebe? A mata o meio ambiente que o cerca? O marisco que você cria? Você vai ficar omisso e perder tudo isso?” – diz o panfleto anônimo que circulou na região, provocando ódio e hostilidade contra as comunidades indígenas.
Digamos que isso não é nenhuma novidade, pois esses cretinos agem assim desde Pedro Álvares Cabral. O novo, aqui, é o fato de eles receberem, agora, apoio da ministra da Casa Civil e de outros setores do governo federal que, por lei, devem defender a Constituição vigente, cujo artigo 231 obriga a demarcação das terras ocupadas de forma tradicional pelos índios. O mais estarrecedor é que o Partido dos Trabalhadores, no poder, empreste seu nome para tal empreitada contra setores sofridos da população.
– Não podemos negar que há grupos que usam os nomes dos índios e são apegados a crenças irrealistas, que levam a contestar e tentar impedir obras essenciais ao desenvolvimento do país, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte”, denunciou a ex-quase-futura freira, Gleisi Hoffmann, sem dizer que grupos são esses e porque são irrealistas suas crenças. Ela não falou de outros grupos, apegados a outras crenças irrealistas, que usam o argumento da produção para contestar as terras indígenas.
De que adianta votar num programa do PT que anuncia a defesa dos desvalidos, dos deserdados, dos lascados, de que adianta eleger a Dilma se quem acaba governando são os ruralistas e o agronegócio? Por que alguém com a biografia de luta da ex-quase-freira aceita fazer esse jogo político sujo, puxando o saco de ruralistas?
– Ela age com interesse eleitoral. Interrompe a demarcação para fazer a vontade dos fazendeiros que vão financiar sua campanha” afirma documento da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul, lembrando que Gleisi Hoffmann, provável candidata ao governo do Estado do Paraná em 2014, quando se candidatou ao Senado, em 2010, recebeu R$ 390 mil de empresas ligadas ao agronegócio.
Se a irmã Gleisi retornar ao convento – ainda é tempo – será recebida com festas e afagos. Nós a apoiaremos na luta contra os ruralistas. Mas se ficar mesmo do outro lado, daremos o troco. Atenção, paranaenses sensíveis e solidários com aqueles cujas terras vem sendo saqueadas e expropriadas há cinco séculos! Quem financia as campanhas eleitorais são eles. Mas quem vota somos nós! Não esqueçam disso em 2014. Güle güle kullan!