A “culpa recíproca absolvitória” e a menina chata

Paulo José Cunha, jornalista, professor e escritor

 

A capacidade criativa dos moradores desta saltitante Pindorama é infindável. A última e mais interessante criação é a “culpa recíproca absolvitória”. Sabe o que é isso? Pois segure o tchan que, antes de explicar, vou lhe mostrar umas invenções tupiniquins que vão lhe deixar de queixo caído.

 

A urna eletrônica – ela mesma, a urna que pariu (!) Lula, FHC, Dilma, Temer, Tiririca e Bolsonaro – foi criada em 1989 por um catarinense. Também nasceram aqui o copo americano (por que americano, se é brasileiríssimo?), o painel eletrônico dos jogos de futebol, a cadeira de rodas que sobe escadas, o coração artificial e o relógio de pulso, bolado por Santos Dumont, que também inventou a máquina de atrasar, o avião. Ah. Somos igualmente autores de outra invenção superimportante: o escorredor de arroz.

 

– Escorredor de arroz? Ah, PJ, vai te catar!

 

Eu juro, menina! A dona-de-casa Beatriz Andrade criou o escorredor em 1959, igualzinho ao que se usa hoje, com aquele achatamento do lado da tigela e os furinhos embaixo.

– Sim, mas que diabo escorredor tem com “culpa recíproca absolvitória”?

Eu explico, minha flor. Já prestou atenção que ninguém no mundo escorre mais o arroz na peneira, como sua bisavó, só usa o escorredor? O nome disso é evolução, minha santa: e-vo-lu-ção.

 

– Karaglio! Quanta besteira!

 

Calma, menina, e tenha modos ao falar. Pois, da mesma forma que evoluímos ao escorrer a água do arroz, estamos evoluindo no Direito. Antigamente só havia a culpa, institucionalizada pela civilização cristã ocidental. Para os cristãos, todo mundo já nasce com culpa no cartório onde Deus é o tabelião. É o “pecado original” das aulas de catecismo. Daí a necessidade do batismo, pra limpar a mancha.

 

– Sim, ka…ramba, mas e a tal de “culpa recíproca absolvitória”, onde é que entra nisso?

 

É que, no passado, havia culpados e inocentes. Você é muito jovem, não conheceu isso. Hoje, é só ouvir político discursando pra perceber que ninguém – da direita ou da esquerda – fala em culpado ou inocente. Em vez disso, diz: se você acusar meu líder de corrupto mas se o seu também for, o meu é… inocente! Exemplo: “Os golpistas falam mal do Lula mas os chefões deles estão mais sujos do que pau de galinheiro”, diz a petezada. Da outra tribuna, um coxinha retruca: “Esses petistas acusam nossos líderes de corrupção mas o Lula já foi condenado duas  vezes!”. Na rebatida, alguém grita: “Se olhassem o próprio rabo iam ver de quem é a verdadeira culpa. Os Cunhas, os Gedéis, os Loures e os Henriques estão no xilindró. Tudo gente lá deles”. Aí um feroz defensor do Temer se arreta: “José Dirceu cumpre prisão domiciliar. Dois tesoureiros do PT estão pagando cana. Palocci, ex-ministro de Dilma, está atrás das grades. E então? Quem é o culpado?”

 

E já que uma força positiva anula uma negativa, todos… são inocentes. Uma culpa anula a outra, entendeu? Isso é ge-ni-al! Por isso se chama “culpa recíproca absolvitória”. Eu achei bacana, e você?

 

– Bacana o quê, PJ, isso é malandragem!

 

Negativo! Isso é a prova de nosso talento para criar invenções revolucionárias, moleca! Agora, sim: a “culpa recíproca absolvitória” vai nos colocar no mais alto patamar da ciência do Direito, um exemplo para o mundo! Como Ruy Barbosa não pensou nisso? Grandes mulas esses Sobral Pinto, Joaquim Nabuco, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes Filho, Seabra Fagundes! Evandro Lins e Silva, Miguel Reale…! Juristas? Pois sim! Um bando de cavalgaduras!

 

– Entendi, entendi. Ka…raca! Essa “culpa recíproca absolvitória” é dez! E a gente achando que os enrolados na Lava-jato eram uns bandidos safados. Todos inocentinhos, injustamente acusados, tadinhos…