“Na escola, nossas crianças estão aprendendo a juntar letrinhas, mas essas letrinhas não dizem nada sobre os índios. As crianças aprendem a ser brancas e isto não está certo”.
(Fernando, 79 anos, conselheiro kaingang da T.I. Nonoai).
– Deixa de ser criança: Não chora! Te comporta! Não faz besteira.
Essa frase não tem qualquer sentido se traduzida para a língua kaingang. Quem afirma isso é um novo doutor indígena na praça, o kaingang Josué Carvalho que defendeu, na última segunda (29), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a tese “Enquanto os adultos brincam: introdução aos processos próprios de ensino-aprendizagem da criança kaingang“. Ele usa “criança” no título porque escreveu a tese em português, mas diz que o termo é inadequado para dar conta da realidade que descreve, na qual a infância é vista com outros olhos, sem conotação depreciativa.
Durante quatro anos, o autor ficou dividido entre a universidade – onde leu e discutiu textos teóricos de antropologia da criança, e as aldeias da Terra Indígena Nonoai (RS) – onde fez sua etnografia, conversando com sábios locais, kujás (líderes espirituais), conselheiros, parteiras, jovens e crianças de ambos os sexos. Observou, filmou, gravou e anotou no caderno as conversas com anciãos facilitadas pela presença em todas elas da avó, dona Fia, de 107 anos. A prima e as sobrinhas ajudaram nas entrevistas com meninas, e seu filho Vinicius, de 10 anos, no encontro com meninos.
A tese busca responder algumas questões: como é que as crianças kaingang aprendem hoje, num contexto de contato com a sociedade regional? Como vivem e pensam? Como interagem com a sociedade envolvente? Quais as formas de circulação dos saberes tradicionais? Qual o papel da escola? Afinal, como os kaingang veem suas crias?
As três mães
A tradução mais próxima em língua kaingang do que entendemos por criança exige o uso de três palavras que demarcam fases da vida. Avós e adultos usam “un xî” para filhos entre 0 e 3 anos de idade, “kãxit xi” para aqueles entre 3 e 8 anos e “kãxit” que nomeia os de 8 a 13 anos. Mas nenhum dos termos é usado no sentido de “imaturo”, “inexperiente”, “pueril”. Isso porque o filho não é considerado folha de papel em branco a quem se deve “ensinar”, mas um ser que compartilha saberes. Não se trata de “moldá-lo” para viver no mundo adulto, de impor, mas de construir juntos o saber.
A busca conjunta do saber é desempenhada inicialmente pelas três mães: a mãe biológica – que vive com o filho até os dois anos como se estivessem amalgamados em um único corpo, a mãe xî – uma irmã mais velha que cuida do irmão menor, e a mãe kofa – a avó que toma conta dos netos. Isso acontece com os Kaingang que somam hoje 40.000 pessoas, das quais 5 mil vivem em centros urbanos e 3 mil em quatro aldeias das Terra Indígena Nonoai, mas Josué, cuidadoso, esclarece que suas observações se limitaram às duas aldeias: Bananeiras 1 e 2.
Numa delas, ele morou com sua mãe, que é kaingang e com seu pai, de origem italiana e guarani, que foi viver como um kaingang. A família reside na aldeia até hoje, mas Josué, alfabetizado por sua mãe xî – uma irmã maior – foi estudar e trabalhar em São Paulo quando tinha quinze anos. Retornou para dedicar-se ao magistério como professor dos anos iniciais na Escola Estadual Indigena Perõga, em Nonoai, de 2004 a 2006. Teve então a oportunidade de observar o comportamento da gurizada, o que faria, de forma mais sistemática, na pesquisa de doutorado.
– Cresci numa região de fronteira entre índios e não índios, ouvindo que índios não prestam, são sujos e preguiçosos, fui obrigado desde cedo a estar com o sinal de alerta ligado o tempo todo e olha que eu nem me parecia fisicamente com um índio pelo fato de meu pai ser italiano. Um italiano kaingang com muito orgulho. Quando entrei na escola, tudo que aprendi foi para deixar de ser índio ou para ter preconceitos contra os índios.
Isso é confirmado pelos sábios com quem Josué conversou. Eles reafirmam que a escola, ao invés de olhar os alunos com a visão que os kaingang tem dos “kãxit”, traz de fora o conceito de “criança” com todos os seus significados e preconceitos, o que é desastroso. “A escola não enxerga as crianças. As crianças não deixam de ser, de forma natural, para mudar e ser outro, elas deixam de ser negando o que são e não precisa deixar de ser negando o que é. Quando isso acontece, está tudo errado” disse um kujá.
Incendiando a escola
A miopia da escola e a violência para aderir a ela é lembrada pela mãe de Josué, hoje com 60 anos: “Naquela época, eu menina de 9 anos, tua avó não queria colocar os filhos na escola, por isso ela foi para o tronco (…) tem até hoje marcas na perna dela, porque não queria mandar a gente para a escola. Nessa escola, se alguém falasse nossa língua, era castigado, ficava sem comer, às vezes de joelho, a professora usava uma vara bem grande para surrar quem falasse a língua, nessa época eu perdi a língua”.
Dona Fia, a avó, confirma os castigos: “Fiquei no tronco porque não queria que meus filhos fossem aprender os costumes dos brancos na escola, depois de tanto ser castigada mandei eles para a escola, durou uns três anos, depois disseram que não era mais para mandar, aí eu não quis e fui para o tronco de novo, mas depois desses castigos, proibi meus filhos de falarem a língua, casei quatro filhos com brancos e sua mãe com seu pai, que é italiano. Eu tive raiva dos costumes dos brancos, depois tive raiva dos costumes dos índios”.
Tereza Kaxin, 81 anos, líder espiritual, contou que nos anos 1970 a escola foi incendiada: “A igreja dizia que não era para obedecer os kujás que mexiam com ervas do mato e dançavam para os espíritos. Eu era pequena, mas lembro da kujá parteira, que sabia tudo sobre ervas e foi queimada viva no meio da aldeia para servir de exemplo. Minha mãe contava que eles perseguiam as kujás com cachorros e armados. Vendo que tinha muito branco na aldeia e que nossos costumes estavam se perdendo, a gente expulsou os colonos da aldeia e colocamos fogo na escola.
Josué ouviu outros sábios entre os quais o cacique José Oreste do Nacimento, o kujá Jorge Garcia e a parteira Maria, que falaram sobre os “kãxit” e sobre a atual escola indígena intercultural e bilíngue. O conselheiro da aldeia Bananeiras resumiu o pensamento de todos:
“A escola tem feito muito para ensinar as coisas dos índios, mas ela nunca vai ser indígena, porque ela está perdida querendo agradar o índio e o branco. Quando eu vejo um ritual feito pela escola, eu percebo que é um espaço dos não índios dentro da aldeia, porque as crianças não estão fazendo como fazem em casa, elas estão se apresentando até pros fóg (não índio), elas estão aprendendo a mentir sobre elas mesmas.
A avaliação coincide com a crítica feita por Bartomé Meliá, para quem a interculturalidade, na qual se fundamenta a atual prática escolar indígena, é uma teoria bonita e um programa razoável que defende a pedagogia do diálogo e a superação das diferenças sem eliminá-las, mas que na prática vem se revelando um rotundo fracasso.
P.S.1 – Josué Carvalho. Enquanto os adultos brincam: introdução aos processos próprios de ensino-aprendizagem da criança Kaingang. Programa de Pós-Graduação em Educação. UFMG. 2016. Banca: Ana Gomes (orientadora), José R. Bessa Freire (UNIRIO/UERJ), Verônica Mendes Pereira (UFOP), Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (UFMG), Rogério Correia da Silva (UFMG)
P.S.2 – Alguns leitores cobram artigo sobre a realidade política apimentada com a Lava-Jato. Mas tem tanto dono furibundo da verdade escrevendo sobre isso, que não faz a menor falta um mortal perplexo e cheio de dúvidas, que se sente como o cangaceiro do Glauber Rocha: “O cangaceiro cansou. Cansou não porque lhe faltasse forças para enfrentar o seu inimigo, mas porque não podia mais respeitá-lo, considerando que é terrível gastar tanta energia com o que não evolui nem engrandece”. Além disso, a mídia impressa não se ocupa dos kaingang, que só interessam à meia dúzia de gatos pingados, com quem compartilho essas linhas.