O economista americano diz que a corrupção tem menos a ver com paixões do que com oportunidades, e que países como o Brasil podem ser otimistas na luta contra essa praga.
Da VEJA, por Claudia Andrade:
O economista americano Robert Klitgaard é uma autoridade no estudo da corrupção. Sua mais célebre contribuição ao tema é a fórmula C = M + D — T, que descreve a corrupção como resultado da concentração de poder econômico e decisório aliada a um déficit de transparência. Klitgaard, contudo, não é adepto da teoria pura. Como consultor de diversos governos em matéria de reforma institucional, ele visitou mais de trinta países na África, na Ásia e na América Latina para estudar seus problemas e pensar em soluções. Suas andanças estão registradas em dois livros saborosos, Tropical Gangsters e Tropical Gangsters II (Gângsteres Tropicais). Depois de passagens pelas universidades Harvard e Yale, hoje leciona na Claremont Graduate University, na Califórnia, e afirma: “A corrupção não é um problema moral”.
● – Uma fórmula matemática pode ajudar a combater a corrupção?
R: Sim, ao centrar nossa atenção nos fatores que são essenciais para que ocorra esse flagelo. Como toda fórmula, ela é genérica, uma depuração da experiência. Apresentei minha equação pela primeira vez em 1988, num livro chamado A Corrupção sob Controle. Ela foi fruto de anos de viagens, de trabalho empírico. Depois disso, continuei visitando países para entender como sistemas de corrupção se enraízam. Narrei algumas dessas histórias em livros menos acadêmicos, Tropical Gangsters e Tropical Gangsters II. Continuo acreditando na validade da fórmula. O que descobri é que a corrupção (C) viceja em setores nos quais haja monopólio de uma atividade econômica (M), em que poucas pessoas tenham um poder decisório muito grande, o que chamo de discricionariedade (D), e em que falte transparência (T). Ou seja: C = M + D — T. Creio que o mérito da equação é não dar ênfase ao papel das pessoas, mas sim às circunstâncias em que o crime ocorre. Não quero me alongar sobre o caso, porque não o acompanho, mas a equação parece captar o que ocorreu na Petrobras, uma estatal que detém o monopólio da extração de petróleo, com uma casta dirigente dotada de grande poder discricionário e que mantém boa parte das suas informações de gestão escondidas dos olhos do público.
● – Mas como falar da corrupção sem falar dos corruptos?
R: E comum tratar a corrupção como um problema moral. Não nego que ela tenha essa dimensão, que deva ser vista também sob essa ótica. Mas, se o seu plano para combater a corrupção é mudar os sentimentos e a mentalidade das pessoas, eu lhe desejo boa sorte. Será um trabalho longo, árduo, e com grande probabilidade de levar a nada. Em sociedades complexas como as nossas, combater a corrupção não pode ser uma tarefa relegada a pregadores e psicanalistas. E preciso adotar uma abordagem pragmática, que também levará a embates árduos, mas terá maiores chances de sucesso. Você deveria se esforçar para quebrar monopólios e tornar mais aberto o setor no qual o problema ocorre. Você deveria limitar o poder de arbítrio dos dirigentes. Você deveria aumentar os mecanismos de transparência que permitam a jornalistas, centros de estudo, consultorias enxergar o que ocorre no interior das empresas. A corrupção tem menos a ver com paixões do que com oportunidades. Se as condições forem propícias, haverá um incentivo para que ela ocorra. Trate, portanto, de eliminar essas condições.
● – Como a corrupção afeta o crescimento econômico de um país?
R: É possível haver crescimento rápido em um ambiente de alta corrupção. A China é um exemplo disso. Também é verdade que, a curto prazo, quando você muda as regras do jogo e reprime a corrupção, às vezes se verifica uma queda no desempenho da economia. Mas, mantidas as outras variáveis, a curva logo se inverterá e será positiva novamente. E os benefícios serão enormes, porque os frutos do crescimento se distribuirão de maneira muito mais profícua. Voltemos à China, um país de pessoas empreendedoras. Depois de décadas de crescimento acelerado, a renda per capita chinesa poderia ser muito maior do que é hoje. Isso não aconteceu por que a corrupção concentrou ganhos nas mãos de alguns e, principalmente, tornou ineficientes diversas cadeias de produção. Não é fácil perceber, mas a corrupção sempre aleija o crescimento a longo prazo. Se um país quer ser grande, ele precisa ter esse mal sob controle. Não é por outra razão que os líderes chineses estão empenhados em coibir a roubalheira.
● – Como estimar as perdas econômicas resultantes da corrupção?
R: Aponto o erro a ser evitado: não se devem confundir os custos da corrupção com o montante das propinas. E comum ver cálculos do tipo “a propina é de 10%, então o custo da corrupção é 10% do valor do contrato ou da transação”. Isso subestima drasticamente os custos sociais de um esquema corrupto. Muita coisa se perde no caminho que leva o dinheiro do caixa de uma empresa ao bolso de um larápio. Um estudo mostrou que pequenas propinas no sistema de irrigação da Índia distorceram de tal forma o seu funcionamento que vastas áreas de solo arável acabaram erodidas. E o tipo de dano que requer muitos anos e muito investimento para ser recuperado. Os mexicanos têm uma ditado que resume muito bem esse desastre: “Para roubar milhares, arruínam-se milhões”.
● – Se as perdas não são tão simples de ser calculadas, como apontar o sucesso de uma operação de combate à corrupção?
Prender os corruptos e reaver fundos desviados é importante, mas não basta. As Filipinas são um caso emblemático. Em junho de 2010, Benigno Aquino III foi eleito presidente com o slogan “Quando ninguém for corrupto, ninguém será pobre”. Sema nas depois de assumir o poder, ele realizou uma reunião de gabinete para desenvolver um plano de ação. A campanha anticorrupção incluiu identificar e punir os grandes criminosos, fechar novas parcerias com empresários e com a sociedade civil e ampliar a coordenação entre as agências governa mentais. Doadores internacionais tiveram um papel-chave no apoio às iniciativas, que trouxeram resultados importantes. No ranking de percepção da corrupção, as Filipinas passaram da 133ª posição, em 2010, para a 94ª , em 2013. A popularidade do governo também aumentou. Em setembro de 2014, o Fórum Econômico Mundial apontou as Filipinas como o país que mais progrediu em termos de competitividade global, passando da 87 para a 52 posição em um período de quatro anos. E a melhora do ambiente de negócios, mais limpo de corrupção, teve um papel relevante nisso.
● – Como as autoridades devem agir em uma crise de corrupção?
R: E sempre fundamental não poupar os peixes grandes. Porque um efeito da corrupção — e agora estamos falando de mentalidades — é que ela torna as pessoas cínicas. Uma nova lei não funciona porque acham que é só outra regra esquecida nos livros. Um novo código de conduta não funciona porque acham que é só falatório. Quando o cinismo se instala, é preciso quebrar o equilíbrio, e uma forma de fazer isso é punindo quem parece intocável. Agora, se a percepção em certo país é de que o problema se tornou generaliza do, então é preciso atacar pontos específicos e buscar resultados rapidamente. Em todos os países que estudei, e que podem servir de exemplo no com bate à corrupção, autoridades empenhadas nesse tipo de campanha implementaram mudanças em áreas bem delimitadas, com resultados que as pessoas puderam perceber no dia a dia em um prazo de seis meses a um ano. Algo como uma limpeza na polícia de trânsito, por exemplo. Quando se tem uma vitória desse tipo, é possível partir para outra área, para algo maior. Construiu-se um ambiente de confiança e criou-se momentum.
● – Além da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, outros atores podem desempenhar um papel relevante no combate à corrupção?
R: Sem dúvida nenhuma. Empresas e instituições da sociedade civil têm um papel crucial nessa guerra. Elas também se enredam em sistemas corruptos. Para escaparem dessa armadilha, precisam ter meios de expor os esquemas perversos sem arcar com um preço impagável. E o que oferecem, por exemplo, os acordos de leniência. Não se vence a corrupção sem romper barreiras entre os setores público e privado, e sem buscar o apoio de instituições sem fins lucrativos. A Índia tem uma experiência interessante, a da Bangalore Agenda Task Force, que faz uso da informação coletada por ONGs e think tanks, e do poder de pressão, dos recursos e do conhecimento técnico da comunidade empresarial, para atacar focos de corrupção na administração pública.
● – Qual a contribuição do jornalismo no combate à corrupção?
R: Um dos fatores da corrupção é um déficit de transparência. A imprensa tem papel funda mental na redução desse déficit. Pode ser um trabalho arriscado. Por isso há tantos jornalistas sendo mortos em lugares como a Rússia ou o Egito. Se você expõe um indivíduo poderoso, ele pode revidar. Mas o trabalho não se resume à investigação. Um caso muito interessante vem do Peru, onde o trabalho da ONG Ciudadanos al Dia tem grande divulgação. Ela faz pesquisas com os cidadãos periodicamente para avaliar a qualidade dos serviços públicos. Uma vez por ano, organiza-se uma noite de premiação, sempre com o apoio de jornais e canais de televisão. Compartilhar boas práticas pode fazer uma grande diferença.
● – Na era da internet e das redes sociais, há algo que o cidadão comum possa fazer para ajudar?
R: A internet é uma arma valiosa. Veja o exemplo curioso, e a meu ver imensamente promissor, do site ipaidabribe.com, novamente da Índia. Nele, qualquer cidadão pode relatar anonimamente situações em que foi obrigado a pagar propina. De modo mais genérico, creio que o engajamento das pessoas nas redes sociais será um motor de mudanças. Sinto que nos próximos anos haverá muito movimento nessa área. Vão surgir cada vez mais sites, aplicativos, ferramentas para ajudar no controle dos serviços e da administração pública. Esquemas de corrupção muitas vezes são difíceis não só de detectar, mas também de entender. Existem operações financeiras complexas, grandes empresas envolvi das, coisas que estão longe do cotidiano da maioria de nós. Mas há uma forma indireta de envolver até mesmo as pessoas mais pobres e menos instruídas no combate à corrupção: é fazê-las falar sobre os serviços que estão recebendo. Ao descobrir o que elas acham sobre o fornecimento de água, o serviço de saúde, o trabalho da polícia, você pode encontrar indícios de desvios e sistemas corruptos. Não é preciso falar sobre corrupção, basta tratar da quilo que faz parte do dia a dia. Aos poucos você vai migrando da simples reclamação para algo mais eficaz, que é o diagnóstico do que está errado e a discussão sobre como melhorar.
● – É comum que se trate a corrupção como “uma velha senhora”, que sempre esteve e sempre estará entre nós. Faz sentido pensar em um mundo livre dessa prática?
R: Não penso na corrupção como algo inerente à natureza humana, mas como fruto de oportunidades. Assim, acredito que é possível reduzi-la em muito, mesmo que não seja possível eliminá-la. Como diz o sociólogo americano John T. Noonan em Bribes (Subornos), o melhor livro já escrito sobre a corrupção, no futuro ela será tão impensável quanto a escravidão é para nós. A escravidão já foi a regra em nosso mundo. Hoje é algo odioso, mesmo que observado ocasionalmente. Compartilho desse otimismo. Já mencionei as Filipinas. Há outros casos de sucesso ao redor do mundo, como Singapura, Hong Kong, a Geórgia ou a Colômbia. Deixe-me fazer a última pergunta: por que o Brasil não seria capaz de avançar nessa batalha? Um país com economia pujante e diversificada, com democracia consolidada, com instituições cada vez mais maduras tem tudo para reduzir a praga da corrupção. Prevejo que em dez anos o país vai olhar para trás com satisfação e dizer que as coisas mudaram.