A presente discussão em torno da licitude/ilicitude, legalidade/ilegalidade das revelações do The Intercept Brasil tem um só objetivo: esvaziar a gravidade de seu significado. Assim, ao invés de o debate travar-se em torno do mérito da questão, o conluio criminoso entre juiz e procuradores, deriva para o secundário, forma e meios de obtenção dos dados cuja revelação escreve uma página dolorosa da história do Poder Judiciário brasileiro.
No frigir dos ovos o grande sistema teme as conhecidas consequências da apuração dos fatos revelados, pois elas caminham da anulação pura e simples dos processos e de suas condenações, à punição daqueles agentes do Estado que prevaricaram.
O ex-juiz é acusado de parcialidade, ilicitude sem remédio.
Antes de mais nada, relembremos que, para ser comprovada, a parcialidade do titular da 13ª Vara Federal de Curitiba não carecia das revelações do The Intercept Brasil. Dela não cuidaram, fugindo de seus respectivos papéis, o Conselho Nacional do Ministério Público Federal, nem o Conselho Nacional de Justiça (órgãos esvaziados pelo corporativismo), nem muito menos o STF, porque estavam todos, inclusive politicamente, ou mesmo por interesses partidários, solidários com as ilicitudes. E solidários acompanharam, cegos e surdos, impassíveis e irresponsáveis, todas as irregularidades seguintes. Nada, rigorosamente nada do que foi revelado até aqui, era desconhecido, seja da imprensa, seja do Poder Judiciário. O silêncio e a omissão foram corretamente recebidos pelos infratores como incentivos. E, assim, ‘foram à guerra’.
A parcialidade emergira cedo, claramente, com a frustrada tentativa de condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (4.3.2016). A ação abusiva ficou evidente com a interceptação e vazamento ilegais de conversa telefônica entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente (16.3.2091). Dois fatos objetivos. Notórios, não careciam de comprovação. Mas o juiz de piso não foi punido.
Desde o início de suas ações, a Lava Jato (em cuja estratégia sobreleva a associação com os meios de comunicação de massa) valeu-se de vazamentos e relacionamentos nada republicanos com jornalistas selecionados, muitas vezes com o objetivo de atemorizar suspeitos e acusados, outras vezes visando a acuar testemunhas. Assim e também por esses e outros meios foram obtidas “delações premiadas”, quando a redução negociada de penas era o outro lado da ouvida de denúncias ou só de insinuações, fundadas ou não, contra acusados escolhidos a dedo.
O ex-juiz, intervindo nas investigações, deu-se ao capricho de indicar testemunhas – aquelas que provavelmente deporiam contra o ex-presidente Lula – e desaconselhar a ouvida de outras, aquelas que ao seu ver não contribuiriam para alimentar a peça acusatória. Superintendente dos procuradores, chegou mesmo a agastar-se quando o MP de São Paulo resolveu – com o propósito de ornar de imparcialidade a Lava Jato (propósito este confessado pelo procurador Delton Dallangnol) – voltar seus radares para o ex-presidente FHG, pois, afirmaria, dizem as últimas revelações, a apuração poderia melindrar “alguém cujo apoio era muito importante para a operação”.
A imprensa jamais ignorou o papel que desempenhava como veículo de vazamento de declarações, depoimentos, conversas do interesse dos operadores da Lava Jato. Jamais se perguntou se direitos estavam sendo violados, se ilicitudes estavam sendo cometidas.
Nenhum drama de consciência a assaltou.
Agora, porém, após o episodio The Intercept Brasil, conhecer a fonte da informação tornou-se mais importante do que apurar a informação em si. Não se discutem os crimes (para poupar os criminosos) mas a legalidade dos meios que levaram à sua descoberta e identificação dos agentes. Para esvaziar uma coisa e outra.
O que revelam as gravações obtidas pelo jornalista Glenn Greenwald e sua equipe?
Que o ex-juiz e ainda ministro, mas ministro de um governo desonrado e atrabiliário, aconselhou, ordenou e orientou investigações, antecipou informações, indicou testemunhas a serem ouvidas e agiu como acusador e investigador nos processos que correram na 13ª Vara Federal de Curitiba, e que, entre outros, mesmo carente de provas, condenou à pena de prisão o ex-presidente Lula. Ou seja, prevaricou estabelecendo ilegal conluio entre julgador e procurador, ignorando solenemente o Art. 254 do Código de Processo Penal: “O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer poderá ser recusado por qualquer das partes: (omissis) IV- se tiver aconselhado qualquer das partes”.
Ninguém, nesse ninguém incluídas as pedras de mármore que ornam o STF, duvida de que o ex-juiz (ademais de muitos outros ilícitos) aconselhou a acusação em prejuízo da liberdade de Lula. Os defensores do ex-presidente têm, insistentemente, arrimados em provas robustas, pleiteado judicialmente a decretação da suspeição.
Em vão.
Por quê? Porque o reconhecimento da suspeição implicará necessariamente a nulidade dos processos movidos contra Lula, como reza o Art. 564, inciso I do Código de Processo Penal, lembrado pelo professor Marcelo Neves em artigo recente (‘Por que Lula deve ser solto imediatamente?’, GGN, 13.6.19): “Art. 564 – A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: I – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz”.
A suspeição do juiz independe de prova porque (i) a parcialidade é fato notório e (ii) foi reconhecida pelo ex-juiz e pelo procurador, ao admitirem o conteúdo dos diálogos expostos pelo The Intercept Brasil.
Há, por considerar, duas questões distintas e todas independem da apuração dos meios e mecanismos dos vazamentos que tantos bons serviços prestam à República: (i) a apuração dos fatos narrados, e (ii) a responsabilização criminal e funcional de seus agentes (o ex-juiz e os procuradores).
O professor Marcelo Neves acrescenta que não pode ser alegado, contra os direitos de Lula, a suspeição (não comprovada) de que a divulgação das comunicações do ex-juiz com o procurador decorre de provas ilícitas. Essa restrição só se aplicaria, se essas provas fossem usadas para incriminar ou punir aqueles agentes públicos. Ora, elas são levantadas em defesa do réu! Que teve sua liberdade esbulhada pelos ilícitos documentados. A apuração das responsabilidades do ex-juiz e dos procuradores dar-se-á em processo próprio.
Para desviar a opinião pública do cerne da questão – a violação dos direitos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — acusados e áulicos intentam desqualificar o conteúdo das conversas vazadas com a aleivosia de suposta ilicitude dos meios de sua obtenção. Contra o direito à informação especulam com o princípio da inviolabilidade da privacidade que não pode ser alegado por servidores públicos para esconder atos ilícitos.
Onde está o interesse púbico senão na apuração dos fatos?
A imprensa não pode se perguntar se é legítimo ou não revelar as conversas ilícitas entre juiz e procurador trazidas a público pelo The Intercept Brasil, quando não teve dúvidas em divulgar – e o fez à larga, com indisfarçável contentamento – o conteúdo de conversas entre a presidente da República e o ex-presidente, gravadas ilegalmente e ilegal e criminosamente vezadas pelo ex-juiz.
O ex-juiz não pode arguir, para com ela proteger-se, a superveniência da privacidade (que não sei se protege o agente público) pois sempre alegou a prevalência do interesse público, argumento com o qual procurava justificar os vazamentos selecionados. Chegou mesmo a defender a validade da “prova ilícita obtida de boa-fé”.
O que sobra?
O Ministério Público apurar os ilícitos, a imprensa correr atrás dos fatos, e, acima de tudo, o STF — aproveitando o julgamento do pedido de habeas corpus por intermédio do qual a defesa do ex-presidente alega a suspeição do ex-juiz — decretar a nulidade de todos os atos processuais praticados pelo ex-juiz de piso contra Lula e demais vítimas da ‘República de Curitiba’), cuja liberdade precisa ser restabelecida, em nome da dignidade que deve caracterizar o Poder Judiciário.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia