O que a guerra da Ucrânia a 10.500 kms de distância tem a ver com o bairro de Aparecida? De que forma a invasão russa afetou os moradores que vivem em suas quinze ruas e treze becos outrora denominados com nomes sugestivos de Pau-não-cessa, Chora-vintém, Saco-do Alferes? Num deles mora a Leonor e sua família, que podem nos dar uma ideia da tragédia vivida pelos povos ameríndios habitantes do nosso país, se fizermos juntos um exercício de imaginação.
Supunhetemos que no quintal da Leonor haja indícios da existência de potássio – base para fertilizantes usados na agricultura. O governador do Amazonas Wilson Lima (vixe, vixe), acusado de chefiar organização criminosa que desviou recursos na compra de respiradores, jura que quer compensar o dano da guerra causado ao Brasil com o corte do fornecimento russo. Para puxar o saco do Bozo (vixissimo), decide invadir o nosso bairro e derrubar todas as casas, diz-que para explorar o potássio existente debaixo delas. A Leonor e os 7.989 moradores do bairro, sem teto e sem chão, que se lixem.
Tal supunhetação é para dar ao leitor desta coluna do Diário do Amazonas, a dimensão da tragédia vivida pelos povos enxotados das terras que habitam há milênios. O gado que o Bozo pastoreia na Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta (9), regime de urgência para a votação do projeto de lei que libera a mineração em terras indígenas, cuja exploração – eles alegam – é uma “forma de superar a dependência brasileira da Rússia no acesso a fertilizantes”. O presidente da Casa, o pau-mandado Arthur Lira, acatou essa alegação falaciosa.
A boiada
As pesquisas comprovam que o Brasil tem reservas para garantir potássio até o ano 2100, dois terços delas em Sergipe, São Paulo e Minas Gerais, segundo Raoni Rajão do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele cruzou os mapas digitalizados das jazidas inexploradas já identificadas pelo Governo Federal com as terras indígenas homologadas e concluiu que não há sobreposição de terras, não há jazidas significativas de potássio nos cobiçados territórios indígenas. Portanto, a mineração nessas terras não resolve o problema dos fertilizantes.
Tem tanto potássio nas terras indígenas quanto no quintal da Leonor. Ou seja, nada. Dados publicados pelo insuspeito Estadão mostram que “a maioria das principais minas de potássio está localizada fora de terras indígenas”. Trata-se, portanto, de mais uma trapaça do Bozo, cujas mentiras deslavadas o Brasil inteiro conhece. O potássio indígena, em sua boca, equivale à cloroquina que cura Covid-19 e à vacina que causa Aids, o que é perigoso porque compromete a máquina do estado com informações falsas responsáveis por danos históricos, prejuízos e muitas mortes.
O projeto de lei que abre terras indígenas para a mineração foi enviado à Câmara dos Deputados por Sérgio Moro (vixe vixe), então ministro da Justiça, em fevereiro de 2020. Logo depois, o sinistro Ricardo Salles declarou que aquele momento em que a opinião pública estava “distraída”, por só se falar de covid-19, era a hora de “ir passando a boiada” das leis que legalizam crimes ambientais. O projeto criminoso provocou escândalo e ficou em compasso de espera. Agora, com a mídia focada na Ucrânia, a “boiada da covid” foi substituída pela “boiada da guerra”, acelerando a tramitação do projeto, sem passar pelas comissões temáticas.
O ato da terra
Os parlamentares do Amazonas que votaram pela urgência – anotem seus nomes – foram Bosco Saraiva, Delegado Pablo, Silas Câmara, Cap Alberto Neto e Sidney Leite (vixes, vixes). Eles não hesitariam em derrubar a casa da Leonor e arrasar o bairro de Aparecida. José Ricardo Wendling (clap clap) foi o único voto contra o projeto considerado pelo Ministério Público Federal (MPF) como um “vício insanável”, “uma falácia”. Procuradores disseram à Folha de SP que vão arguir sua inconstitucionalidade.
Antes disso, os índios e seus aliados reagiram, conscientes de que o tal projeto compromete irresponsavelmente o nosso futuro, o meu e o teu leitor, assim como o dos nossos filhos e netos. Por isso, na quarta-feira, milhares de pessoas se reuniram na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no Ato pela Terra, para protestar contra o Pacote da Destruição, composto por vários projetos de lei, entre eles o “PL do Veneno” que abre o país para os agrotóxicos e vários outros que tratam do licenciamento ambiental, da grilagem de terras públicas, da exploração mineral em terras indígenas e do marco temporal.
O ato contou com a presença de líderes indígenas, representantes de 230 movimentos sociais e organizações da sociedade civil, além de 40 artistas, entre os quais Caetano Veloso, Emicida, Nando Reis, Daniela Mercury, Lázaro Ramos, Maria Gadú, Nathalia Dill, Letícia Sabatella, Seu Jorge. Um grupo se reuniu com os ministros do Supremo Tribunal Federal e com o presidente do Senado Rodrigo Pacheco para manifestar sua desaprovação contra uma medida que transforma o nosso país em “pária internacional afastado da pauta do meio ambiente”.
Na audiência realizada no Salão Negro do Congresso Nacional, Caetano Veloso destacou a responsabilidade do Legislativo na preservação ambiental e na defesa dos direitos indígenas e de outros povos tradicionais. Uma parte sadia do país estava lá, no Ato pela Terra, cantando, discursando, gritando palavras de ordem, com faixas, cartazes e bonecos infláveis, dando-nos a confiança de que em breve sairemos desse pesadelo.
A capivara da esperança
Quando vi fotos de manifestantes que erguiam uma gigantesca capivara inflável, cabeçuda e de pernas curtas, minha esperança aumentou, vá lá saber o porquê. Não era uma paca pequena, nem uma graciosa cutia, mas o maior roedor do mundo, cuja fêmea gera quatro filhotes por vez. Uma vez vi uma delas mergulhando no lago de Coari (AM). Elas são solidárias com várias aves, como o bem-te-vi, que a usa como poleiro ou como o gavião e a jaçanã que catam parasitas no pelo de seu ventre para se alimentar. Que lição aquela capivara inflável quer nos dar?
Talvez esteja elas nos enviando um recado semelhante ao do canário que os mineiros levavam numa gaiola para dentro das minas de carvão da Inglaterra. Mais sensível que o bicho homem aos gases tóxicos acumulados nos túneis e socavões, o canário era o primeiro a sentir quando o ar ficava envenenado. Sua morte avisava os mineiros que deviam sair correndo da mina. A morte dos índios funciona como se fossem os nossos canários socioambientais – diz Eduardo Viveiros de Castro. A agonia deles é “aviso” de que a sociedade está apodrecendo. Mas à diferença dos mineiros, não temos pra onde correr.
Afinal, o que quer nos dizer a capivara inflável ali representando a espécie? Que nós não vamos permitir o garimpo em terras indígenas, que vamos derrotar nas urnas seus invasores e que o governador Wilson Lima não se meta à besta para procurar potássio no quintal da Leonor. Lá, no antigo bairro dos Tocos, a resistência chefiada pelos comandantes Eudimar Bandeira e Armando Barrella saberá reagir à altura, mostrando que não é mera coincidência o Beco do Pau-não-cessa ter essa denominação. Lutaremos em cada beco, em cada viela, em cada rua, por terra, ar e água e até no Igarapé de São Vicente.
Fotos: Midia Ninja e Jacqueline Lisboa