Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos semente (Provérbio mexica).
Na virada do ano, duas notícias sobre os índios pipocaram nas redes sociais: uma má e outra boa. A má foi o crime estarrecedor que vitimou o bebé Kaingang, de dois anos, na Estação Rodoviária de Imbituba (SC), degolado diante da própria mãe, no dia 30 de dezembro, por um jovem de 23 anos, que já está preso. A boa foi o nascimento em Roraima de uma menina indígena Macuxi, a primeira criança de 2016. Ambas mereceram o silêncio dos indecentes, já que quase toda a a mídia de circulação nacional que se omitiu de forma inquietante, continua calando e andando para tudo o que se refere a índios.
O bebé Kaingang, Vítor Pinto, foi enterrado em 1º de janeiro, no cemitério da Aldeia Kondá, Chapecó, levando com ele um pouco de nossa humanidade e aumentando a nossa vergonha, no mesmo dia em que a menina Macuxi, saudável, trazia para o mundo os seus 3,50 kg e seus 44 cm, renovando nossas esperanças. A mãe Vanielsa Galé, de 20 anos, da comunidade de São Francisco, Normandia, teve parto normal e tranquilo. Parece que a menina Macuxi veio nos alertar de que a vida ainda vale a pena, apesar de tudo.
Já Sônia da Silva, mãe do bebé assassinado, participou nesta quarta (6) ao lado do pai Arcelino Pinto, de manifestação que saiu da Rodoviária, com a presença de pessoas indignadas, entre as quais os Guarani Mbyá portando lenços vermelhos no pescoço em menção ao kaingang degolado. O protesto terminou na delegacia de Imbituba, onde Sônia declarou: “Se um índio cortasse a garganta de uma criança branca, o Brasil viria abaixo. Quero a mesma indignação pela morte do meu filho” (OESP, 7/1).
Imbituba, um cipoal
A mídia calou. A indignação não aconteceu, embora o território de Imbituba tenha sido originalmente povoado por índios Carijó, que no século XVII tiveram suas terras invadidas, mas deixaram fortes marcas nos sambaquis, assim como na toponímia, nos nomes de praias, lagoas, arroios, morros como Itapirubá, Ibiraquera, Araçatuba, Sambaqui, Mirim e tantos outros. Imbituba, nas línguas da família tupi, se refere ao cipó “imbé”, usado na fabricação de cordas, acrescido do sufixo “tuba”, que designa abundância.
Imbituba está cercada de índios. Não são muitos, mas para onde você se vira, é possível encontrá-los. Lá ainda tem gente falando Kaingang e Guarani. Mas tal presença, tanto a simbólica como a física, não agradou a Matheus Silveira, o Teto, suspeito do crime. A polícia informou que ele é “usuário de drogas, sofre de distúrbios mentais” e precisa de tratamento. Embora o inquérito não esteja concluído, o delegado já adiantou não ter visto conotação racista no crime, admitindo, porém, que o assassino estava “incomodado com a presença dos indígenas no local“.
A origem desse incômodo pode estar nas omissões e nas ações da escola e da mídia. Teto estudou até a oitava série no Colégio Caic. Podemos supor que ele vê televisão e eventualmente lê jornais. Cabe indagar o que a escola e a mídia lhe disseram sobre os índios de Imbituba e do Brasil e o que silenciaram. Foi isso que o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Faculdade de Educação da UERJ procurou saber em relação a outras regiões, que podem ajudar a refletir sobre Imbituba.
A pesquisa ouviu donas de casa, estudantes, professores, trabalhadores na indústria, funcionários, profissionais liberais, desempregados de todas as faixas etárias e de diferentes classes sociais, a sua maioria residente no Rio de Janeiro, mas também em outros Estados. O objetivo foi avaliar a influência da escola, da mídia e de outras instituições na construção da imagem sobre o índio internalizada por essas pessoas.
O índio na escola
A pesquisa procurou saber se o entrevistado visitou alguma aldeia, como ele vê o índio hoje, se identifica as fontes que deram origem a essa representação, se lembra o que lhe foi ensinado na escola e qual o livro didático que usou, qual a imagem predominante do índio na mídia e se conhece o Museu do Índio ou algum outro museu com exposição sobre a temática indígena. Embora a pesquisa não esteja ainda concluída, podemos comentar algumas respostas, sem a pretensão de que sejam representativas.
Os entrevistados não tiveram qualquer contato pessoal com índios. Nenhum deles conhece uma aldeia indígena. Mas todos tem opinião firme sobre o lugar dos índios na sociedade brasileira. Considerando que dos 200 milhões de brasileiros, provavelmente 99% nunca visitaram uma aldeia nem tiveram contato com os índios, podemos concluir que o juízo que fazem é aquele que é passado pela escola, pelo museu, pela mídia, entre outras instituições.
Numa rápida leitura, se verificou que os entrevistados confirmam os preconceitos que se têm sobre os índios. Talvez a resposta mais preconceituosa tenha sido dada por um deles, com curso universitário concluído na área de Administração, que classificou os índios como “preguiçosos”, “bêbados”, um “entrave para o progresso”, “um câncer que deve ser extirpado do Brasil”. Bolsonaro não poderia ser mais contundente.
O curioso é que essa imagem não coincide com a da própria mãe do entrevistado, uma dona de casa que tem apenas o ensino fundamental, para quem “os índios respeitam a natureza”. Algumas respostas nos permitiram verificar que o preconceito se manifesta, talvez com mais força, naquelas pessoas com escolaridade avançada, que tem mais acesso à mídia. Se isso se confirma, podemos concluir que quanto mais escola, mais mídia, menos informação objetiva, mais preconceito.
É claro que precisamos ter cuidado com qualquer generalização a partir de uma amostra que não é representativa. No entanto, é saudável que no momento em que se discute mudanças no sistema escolar, o documento sobre a Base Nacional Comum Curricular pretenda abrir brecha para a reflexão sobre a história indígena, tradicionalmente ausente da escola. Uma oposição formada entre outros por Marco Antonio Villa, doutor em história social e Demétrio Magnoli, doutor em Geografia Humana, ambos iletrados em história indígena, se manifesta histericamente.
– E a Mesopotâmia? E o Egito? – eles berram, como se discutir na escola o lugar dos índios seja incompatível com outros temas. O Clube Militar do Rio de Janeiro, que vem reproduzindo artigos desses autores considerados “trombones da direita”, reforça o coro contra a introdução da temática indígena e afrobrasileira no currículo, invertendo a questão:
“A ordem do dia é esculpir um Brasil descontaminado de heranças europeias” – reclama o Clube Militar em sua página na internet, quando o que acontece até aqui é todo o contrário.
Quantas Imbitubas teremos ainda de viver até romper o silêncio da escola e da mídia?