Há consenso quanto às evidências de consolidação da democracia brasileira. Ela já não se sujeita aos ventos golpistas que costumam soprar em solos sulamericanos, inclusive sob disfarçadas formas de mudanças constitucionais abonadas por inapropriados plebiscitos.
Otávio Mangabeira, notável político baiano com grande prestígio nas décadas de 40 e 50, dizia que a “democracia brasileira é uma plantinha muito tenra” que exige especiais cuidados para não fenecer. Os tempos são outros, dirão. Sem pretender esgotar o tema, não custa todavia identificar algumas fragilidades que podem solapar gradativamente o que se presume consolidado e comprometer o efetivo exercício da democracia, ainda que preservada em seus aspectos formais.
As ameaças ao patrimônio são reais. Quando movimentos ditos sociais, como MST e Via Campesina, invadem e destroem propriedades é sintoma de que a democracia não anda bem, pois se abdica dos meios legais em nome da pressa por uma obsoleta e fastidiosa reforma agrária. Esses movimentos sequer têm identificação como pessoa jurídica e se utilizam de instituições “laranjas” para praticar toda sorte de desmandos com recursos provenientes do erário. Invadem prédios públicos, cuja desocupação demanda uma reintegração de posse pela via judicial, sem que haja responsabilização criminal dos ocupantes.
Será que o desrespeito à lei concorre para edificação da democracia? Será que a expropriação de terras e sua subseqüente ocupação por pessoas sem qualificação técnica ou gerencial vão melhorar o nível da atividade agrícola ou gerar mais emprego e renda?
O uso social da propriedade deve fundamentar a desapropriação do latifúndio improdutivo. Sua exploração, observados limites que previnam a concentração da propriedade, deve ser feita da forma mais eficiente possível do ponto vista econômico e social. Caso contrário, veremos, como já se vê, um inovador tipo sociopolítico: o parapatrimonialismo.
O desapreço pela propriedade também se vê nas áreas urbanas. A ocupação desordenada das favelas cariocas e outras áreas periféricas das grandes cidades é uma calamidade. Põe em risco a vida de seus ocupantes, agride despudoradamente o meio-ambiente e passa a abrigar o narcotráfico e outras atividades criminosas. De tudo resulta uma miserável grilagem de terras públicas, que reproduz, nas cidades, o que é feito irresponsável e impunemente, na Amazônia e no Centro-Oeste, por fazendeiros e seus prepostos.
Os Ministérios constituídos para cuidar dessas matérias esgotam suas agendas de trabalho na administração de verbas destinadas a entidades públicas e organizações não-governamentais, segundo critérios ditados por mesquinhos interesses político-eleitorais.
As diversas formas de violências contra as pessoas são também ameaças à democracia brasileira. É impressionante o crescimento da violência especialmente nos grandes aglomerados urbanos. Induzidas por fortes circunstâncias prosperam verdadeiras zonas de exclusão social nas periferias das cidades.
Nada se faz para deter a onda criminosa. O Estado se perde em questiúnculas corporativas e fica inerte. Abastecidos por fundados argumentos que assinalam práticas ilegais por parte das polícias, os meios de comunicação assumem uma espécie de condescendência jesuítica que finda por paralisar qualquer ação ordenada e sistemática visando a debelar a criminalidade.
O furor persecutório do Estado, não raro como nítida inspiração política, conspira igualmente contra a democracia. De forma sibilina, porém não menos perversa. Interceptações telefônicas ilegais ou abusivas, denunciação caluniosa, vazamento criminoso de informações sigilosas, ações espetaculosas e frequentemente iníquas, etc. compõem um cenário típico de terrorismo de Estado, que afasta nos homens honrados a justa pretensão do exercício da atividade pública. A acusação injusta a inocentes faz a alegria dos culpados.
A autoridade exige, na mesma proporção, responsabilidade – melhor dizendo, a possibilidade de responsabilização. As leis que disciplinam o abuso de poder e a responsabilidade civil do Estado há muito demandam aperfeiçoamentos. O que hoje vigora é inócuo.
A corrupção desenfreada ocupa lugar de destaque entre os inimigos da democracia. Não se diga que o aumento dos níveis de corrupção constitui falsa impressão decorrente da crescente divulgação de ilícitos. É verdade que a transparência é cada vez maior, mas é também verdade que a corrupção no setor público ou privado cresce assustadoramente, mormente porque se faz acompanhar da impunidade. A desejada transparência, infelizmente, conseguiu banalizar a corrupção. Mensaleiros e sanguessugas, negociadores de emendas orçamentárias e comensais dos festins das casas legislativas, fraudadores de balanços e doleiros, são todos eles protagonistas da corrupção sistêmica.
O que fazer? Só nos resta realimentar a esperança de que processos político-eleitorais possam nos conduzir à boa governança (good governance ou simplesmente goo-goo, como dizem os americanos), que seja capaz de empolgar atitudes afirmativas em favor de uma democracia de verdade. Não precisam me lembrar, contudo, que “otimista é um pessimista mal-informado”.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal.