Andou na moda falar de decoupling para dizer, em simples português, descolamento entre a economia brasileira e a internacional. Os efeitos da crise em nossa economia fizeram o termo sair de moda. Foi substituído por termo mais terno, “marolinha”. Com o bicho-papão corroendo o mercado financeiro lá fora (na verdade, o sistema financeiro central quebrou) há certo aturdimento.
Não se sabe com que palavras qualificar o que anda pelo mundo: recessão prolongada, depressão, fim do unilateralismo americano na política, multipolaridade, não-polaridade, etc. Por aqui o governo prefere passar em marcha batida sobre o que nos azucrina. Em vez de desenhar quadros sombrios ou róseos para o mercado, faz o decoupling à moda brasileira: descola a economia da política, precipita o debate eleitoral e, nele, vale o discurso vazio.
É verdade que não somos os únicos a encobrir as angústias apelando para gestos sem conotação, sequer alusiva, aos fatos e circunstâncias. Basta mencionar a campanha bolivariana pela reeleição perpétua, uma quase-caricatura da política. O significado da democracia se esboroou na “consulta popular”. Se o povo quer o bem-amado para sempre, pois que o tenha e, como disse nosso presidente Lula, se a prática ainda não é boa para o Brasil, é questão de tempo. Quando a cidadania amadurecer, encontrará a fórmula de felicidade perpétua…
Assisti na TV, por acaso, ao último comício eleitoral do presidente Chávez em Caracas e, confesso, fascinei-me. Ele chegou, simpático como sempre, um pouco mais gordo que o habitual, vestindo camisa-de-meia vermelha, abraçando toda a gente, sorrindo, e foi direto ao ponto. “Hoje não falarei muito, vamos cantar!”, disse. E entoou uma canção amorosa de melodia fácil, repetindo o refrão “amor, amor, amor…” Conversou com um ou outro no palanque, incitando-os a também cantar, falou familiarmente com a plateia e finalizou: amor é votar sim no domingo! Por mais que no plano pessoal possa sentir até estima pelo personagem, não pude deixar de reconhecer no estilo algo que nos é habitual: o modelo Chacrinha de animação de auditório. Funciona, e como!
O descolamento entre a política e a realidade das pessoas (não só a economia), a repetição simbólica de gestos que guardam pouca relação com um ambiente racional, mas “ligam” o ator com a plateia e com a “sociedade”, está se tornando regra nas atuais democracias de massas. Há algo de encantatório no modo como a política do gesto sem palavras (ou em que as palavras contam menos do que a forma) funciona, substituindo o discurso tradicional.
Quando me recordo do “sangue, suor e lágrimas” dito por Churchill ao se tornar primeiro-ministro em plena guerra contra o nazismo, do discurso em Fulton, quando disse que uma “cortina de ferro descia sobre a Europa”, ou de vários pronunciamentos de Roosevelt, como o de posse em plena Depressão, célebre pela frase “nada há a temer, exceto o próprio medo”, ou ainda de Getúlio Vargas no estádio do Vasco da Gama apelando aos trabalhadores, e comparo com a retórica atual, há um abismo a separá-los.
E não se diga que é fenômeno de países de “democracia pouco amadurecida”. A entronização de Obama como imperador de todos os americanos, na magnífica posse no Capitólio, assemelhava-se a uma grande cena romana. O cenário era tão expressivo, a fusão simbólica do recém-eleito com os founding fathers e com os valores fundamentais da democracia americana eram tão fortes que obscureceram o conteúdo do discurso inaugural. E isso no caso de alguém que, por sua cor e mesmo por sua campanha, trouxe um significado imenso de renovação.
Ainda na semana passada, na primeira visita presidencial ao Congresso, o que foi dito sobre a crise econômica e sobre o futuro foi menos importante do que o reafirmar o “yes, we can”, num cenário da pátria unida para perpetuar sua glória. Mesmo que o castelo financeiro esteja desabando, a América vencerá, era a mensagem. No caso, nada que ver com Chacrinha, o símile é outro: a invocação do pastor, a reafirmação da fé, e não a troca simbólica de favores, do bacalhau, da Bolsa-Família ou da canção de amor.
Faço estes comentários despretensiosos porque me preocupa o que possa vir a ocorrer no Brasil. A mídia e a sociedade cobram um discurso de oposição. Diz-se, e é certo, que ela deve unir-se se quiser vencer. Mas que discurso fazer? O racional, da crítica ao desmanche das instituições, do enlameamento cotidiano da política, deveria ganhar mais vigor, dizem. O grito de Jarbas Vasconcelos estava parado no ar e sua entrevista na Veja deu-lhe um sopro de vida. Mas foi o próprio senador quem mostrou os limites desse tipo de protesto: o governo e o próprio presidente banalizaram o dá-cá-toma-lá. É como nos computadores, quando se envia um e-mail e surge o aviso: a caixa está cheia. A caixa da revolta dos brasileiros contra o mau uso da política parece estar cheia. Temo que qualquer discurso “político” seja logo desqualificado pelos ouvintes.
Quer isso dizer que as oposições devem silenciar sobre a perda de substância das instituições, sobre o clientelismo e a corrupção larvar, tudo com a leniência de quem manda? Não. Mas precisam inventar uma maneira de comunicar a indignação e as críticas que toque na alma das pessoas. Este é o enigma da mensagem política, de governo ou de oposição. Tanto o modelo Chacrinha como o do discurso de pregador chegam à alma das pessoas. Não estou dizendo que a comunicação política se resolve pela supressão do discurso analítico. Isso seria rendermo-nos à ideia da política como mistificação (o que, aliás, não é o caso de Obama). Mas quando se dispõe de um ícone, como o Plano Real, por exemplo, ou quando o próprio candidato é um ícone, tudo fica mais fácil.
Em nosso caso, as oposições, além de articularem um discurso programático, condição necessária para quem se respeita e acredita nas instituições, deverão expressá-lo de forma a sensibilizar o eleitorado. Para tal não bastam a crítica convencional e a discussão da política, tal como ela ocorre no Congresso, nos partidos e na mídia. É preciso buscar os temas da vida que interessem ao povo. Ademais, a comunicação emotiva requer “fulanizar” a disputa para atribuir ao candidato virtudes que despertem o entusiasmo e a crença. Sem eles, a “caixa de entrada” das mensagens da sociedade continuará a dar o sinal de estar cheia e os ouvidos continuarão moucos aos conteúdos, por melhores que sejam. Pior ainda se não os tivermos. Mas só eles não bastam. Programa político só mobiliza a sociedade quando é vivido por intermédio do desempenho de personagens que tratam como próprias as questões sentidas pelo povo.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República.