EM “A REPÚBLICA”, Platão conta o mito do camponês Giges que, certo dia, pastoreando suas ovelhas, encontra uma cratera aberta por violenta tempestade. Lá, ele descobre o cadáver de um homem, com um anel no dedo.
Pega o anel e o coloca no próprio dedo. E, para sua surpresa, percebe que a joia lhe dá a faculdade de se tornar invisível.
Com esse poder, Giges passa a cometer uma série de delitos: seduz a rainha, mata o soberano, usurpa o poder. O mito desvenda, assim, a propensão humana a praticar atos condenáveis quando há a certeza da invisibilidade. Impossível não pensar nisso diante do mais novo escândalo nacional, envolvendo o governador de Brasília.
Repetem-se comportamentos -mudando apenas os nomes e os partidos- e fica evidente que a visibilidade dos atos públicos, a tão decantada transparência, somada a ações exemplares de punição ao mau uso do dinheiro do contribuinte, é o melhor caminho para inibir a corrupção e constranger atos ilegais e imorais. Quando não temos processos consolidados que permitam o acompanhamento e o controle social, a corrupção, que se nutre da doentia obsessão pelo poder em si mesmo, ganha espaço e desenvoltura.
Infelizmente, ainda se entende o controle social como algo que atrapalha, empata. Atrapalha o quê e a quem? Seguramente, não a população e o interesse público, como estamos cansados de ver.
A corrupção política, envolvendo agentes públicos e privados, deteriora as instituições e rouba da sociedade o seu espaço de escolha, de realização de objetivos comuns e de solução de problemas dentro de regras democráticas. É a sombra que acompanha a história brasileira e hoje atinge o paroxismo.
A política se descolou da sociedade e atua movida por suas próprias razões e interesses, o que não leva e nunca levará a atos eticamente aceitáveis, mesmo que muitos deles não estejam tipificados em lei como crimes.
Nossa tarefa é a de identificar, na política, onde estão os anéis de Giges e destruí-los. No caso de Brasília, não penso que se deva tripudiar ou correr para tirar proveito político da desgraça que, a rigor, é da cidade. Não cabe vingança, mas sim justiça, para retomar o primado do interesse coletivo. Mas isso não esgota o assunto.
O risco está aí, no modelo de financiamento de campanhas, na tendência a mostrar o mínimo possível das entranhas da gestão pública, na pouca disposição a enterrar os privilégios que alimentam a fogueira da corrupção. O projeto de iniciativa popular conhecido como Ficha Limpa ainda está patinando no Congresso, o que é um mau sinal. Não é este o momento emblemático de aprová-lo?
contatomarinasilva@uol.com.br
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.