Um dos temas mais difíceis do mundo contemporâneo é o que fazer com o uso de drogas.
Existem algumas comprovações bem estabelecidas sobre a questão. Se é verdade que sempre houve consumo de diferentes tipos de drogas em culturas muito diversas – embora não em todas -, não menos verdade é que ele no geral se deu em âmbito restrito e socialmente regulamentado, principalmente em cerimônias rituais.
Não é esse o caso contemporâneo: o uso de drogas se disseminou em vários níveis da sociedade, com motivações hedonísticas; no mais das vezes, sem aprovação social, embora, dependendo da droga, haja certa leniência quanto aos usuários.
Sabe-se também que todas as drogas são nocivas à saúde, mesmo as lícitas, como o álcool e o tabaco. E que algumas são mais nocivas do que outras, como a heroína e o crack.
A discussão sobre se o consumo de drogas mais fracas induz ao de outras mais fortes é questão médica sobre a qual não há consenso.
Para fins de política pública o importante a reter é que as drogas produzem consequências negativas tanto para o usuário quanto para a sociedade e que reduzir ao máximo o seu consumo deve ser o principal objetivo.
A discussão, portanto, é sobre diferentes estratégias para atingir o mesmo objetivo. Até agora a estratégia dominante tem sido a chamada “guerra às drogas”.
Foi sob a sua égide, sustentada fundamentalmente pelos Estados Unidos, que as Nações Unidas firmaram convênios para generalizar a criminalização do uso e a repressão da produção e do tráfico de drogas.
Decorridos dez anos, a agência da ONU dedicada às drogas reuniu-se este ano em Viena para avaliar os resultados obtidos pela política de “guerra às drogas”.
Simultaneamente, na Europa e na América Latina, comissões de personalidades independentes fizeram o mesmo, apoiando-se em análises preparadas por especialistas.
Eu copresidi com os ex-presidentes da Colômbia e do México, respectivamente César Gaviria e Ernesto Zedillo, a comissão latino-americana.
Nossa conclusão foi simples e direta: estamos perdendo a guerra contra as drogas e, a continuarmos com a mesma estratégia, conseguiremos apenas deslocar campos de cultivos e sedes de cartéis de umas para outras regiões, sem redução da violência e da corrupção que a indústria da droga produz.
Logo, em lugar de teimar irrefletidamente na mesma estratégia, que não tem conseguido reduzir a lucratividade e, consequentemente, o poderio da indústria da droga, por que não mudar a abordagem?
Por que não concentrar nossos esforços na redução do consumo e na diminuição dos danos causados pelo flagelo pessoal e social das drogas? Isso sem descuidar da repressão, mas dando-lhe foco: combater o crime organizado e a corrupção, em vez de botar nas cadeias muitos milhares de usuários de drogas.
Em todo o mundo se observa um afastamento do modelo puramente coercitivo, inclusive em alguns Estados americanos.
Em Portugal, onde desde 2001 vigora um modelo calcado na prevenção, na assistência e na reabilitação, diziam os críticos que o consumo de drogas explodiria. Não foi o que se verificou.
Ao contrário, houve redução, em especial entre jovens de 15 a 19 anos. Seria simplista, porém, propor que imitássemos aqui as experiências de outros países, sem maiores considerações.
No Brasil, não há produção de drogas em grande escala, exceto maconha. O que existe é o controle territorial por traficantes abastecidos principalmente do exterior.
Dada a miserabilidade e a falta de emprego nas cidades, formam-se amplas redes de traficantes, distribuidores e consumidores que recrutam seus aderentes com facilidade.
O País tornou-se um grande mercado consumidor, alimentado principalmente pelas classes de renda média e alta, e não apenas rota de passagem do tráfico.
Enquanto houver demanda e lucratividade em alta será difícil deter a atração que o tráfico exerce para uma massa de jovens, muitos quase crianças, das camadas pobres da população.
A situação é apavorante. O medo impera nas favelas do Rio. Os chefões do tráfico impõem regras próprias e “sentenciam”, mesmo à morte, quem as desrespeita.
A polícia, com as exceções, ou se “ajeita” com o tráfico ou, quando entra, é para matar. A “bala perdida” pode ter saído da pistola de um bandido ou de um policial.
Para a mãe da vítima, muitas vezes inocente, dá no mesmo. E quanto à Justiça, não chega a tomar conhecimento do assassinato.
Quando o usuário é preso, seja ou não um distribuidor, passa um bom tempo na cadeia, pois a alegação policial será sempre a de que portava mais droga do que o permitido para consumo individual.
Resultado: o usuário será condenado como “avião” e tanto quanto este, ao sair, estigmatizado e sem oferta de emprego, voltará à rede das drogas.
É diante dessa situação que se impõem mudanças.
Primeiro: o reconhecimento de que, se há droga no morro e nos mocós das cidades, o comércio rentável da droga é obtido no asfalto.
É o consumo das classes médias e altas que fornece o dinheiro para o crime e a corrupção. Somos todos responsáveis.
Segundo: por que não “abrir o jogo”, como fizemos com a aids e o tabaco, não só por intermédio de campanhas públicas pela TV, mas na conversa cotidiana nas famílias, no trabalho e nas escolas?
Por que não utilizar as experiências dos que, na cadeia ou fora dela, podem testemunhar as ilusões da euforia das drogas? Não há receitas ou respostas fáceis.
Pode-se descriminalizar o consumo, deixando o usuário livre da prisão. As experiências mais bem-sucedidas têm sido as que vêm em nome da paz, e não da guerra: é a polícia pacificadora do Rio de Janeiro, não a matadora, que leva esperança às vítimas das redes de droga.
Há projetos no governo e no Congresso para evitar a extorsão do usuário e para distinguir gradações de pena entre os bandidos e suas vítimas, mesmo quando “aviões”, desde que sejam réus primários. Vamos discuti-los e alertar o País.