Alguns setores da luta contra a AIDS têm sugerido que o ex-presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, cometeu genocídio por sua omissão na luta contra a doença, em seu país, ao longo de seus dois mandatos.
Por oito anos, o governo sulafricano recusou a ideia de que a AIDS era transmitida pelo vírus HIV, fechou os olhos à epidemia, recusou a distribuição dos antiretrovirais e incentivou o uso de curandeirismo como forma de tratamento.
O resultado é que, em pouco mais de uma década, a África do Sul, com 40 milhões de habitantes, viu surgir 2,9 milhões de casos, que já deixaram um rastro de 360 mil mortos por causa da AIDS.
Uma tragédia para praticamente todas as famílias do país: redução na esperança de vida, queda na produtividade, elevação dos custos privados e dos gastos públicos, uma geração de crianças órfãs, maior do que durante as guerras – porque nelas as mães sobreviviam.
A demora em dar atenção ao assunto – tratar a AIDS com seriedade por parte do governo sulafricano – forçou o setor privado a atender seus trabalhadores até mesmo contra a vontade do governo.
A empresa Anglo Gold South Africa começou, em 2002, a distribuir antiretrovirais entre seus trabalhadores, porque percebeu o elevado custo por absenteísmo ou para repor os trabalhadores doentes ou mortos.
O governo Mkebi insistia que os novos medicamentos eram instrumentos do colonialismo. Afirmava que o problema da África do Sul era a pobreza e não a doença.
E preferiu negar, esconder, fazer vista grossa à tragédia, além de afirmar que a estratégia correta era o crescimento econômico, suficiente para resolver o problema da epidemia.
Do ponto de vista do sofrimento físico e sentimental, nada se compara à tragédia da epidemia de AIDS na África, salvo talvez o holocausto durante o período nazista.
Mas, o que dizer dos governos que fecham os olhos à disseminação de uma doença igualmente grave, embora menos mortal: a deseducação dos povos?
Embora o impacto sobre a vida seja muito maior e mais visível no caso da AIDS, negar educação traz desgaste e sofrimento de outro tipo. A AIDS traz um sofrimento físico e até a morte, mas a deseducação dos povos traz baixa renda, ineficiência, desigualdade, pobreza, humilhação.
Por sua etimologia, a palavra genocídio significa o assassinato físico de grandes massas de pessoas, não se aplica ao descaso com a educação.
Mas, do ponto de vista conceitual, esse descaso significa a condenação de dezenas de milhões de brasileiros à tortura do analfabetismo, à fome e penúria da pobreza, à falta de informações e de oportunidades.
Do ponto de vista de nação, é uma traição à Pátria, sua condenação ao atraso e ao subdesenvolvimento.
Independentemente do nome do crime, sua dimensão é de genocídio e suas conseqüências são de uma “outra AIDS” invisível no corpo, mas perceptível no espírito e no conjunto da nação.
Uma “AIDS cinza”, a cor do cérebro, provocada pelo que o presidente Lula antes chamava de “custo do não fazer”, a partir do conceito chamado antes dele de “custo da omissão”.
Negar educação é uma forma de cremar cérebros. O crime pode ser chamado de “neurocídio” – assassinato em massa de neurônios -, não pela ação de quem opera a câmara de gás, mas de quem faz de conta que não vê a fumaça subindo do crematório de cérebros.
Durante a escravidão, “queimamos” africanos, jogando-os ao mar, condenando-os ao trabalho forçado, tanto quanto os nazistas condenaram e cremaram sobretudo judeus.
Agora, cremamos cérebros ao expulsar 60 crianças por minuto do ano letivo e não dar educação de qualidade aos que nela ficam.
Como a África do Sul com a AIDS, no Brasil muitos consideram “genocidas” os que ameaçam o futuro ao queimar florestas, mas ignoram os que ameaçam o futuro de milhões de crianças e de todo o País ao queimar-lhes o cérebro, negando-lhes uma escola de qualidade.
Se negar o atendimento correto aos portadores de HIV pode ser considerado uma forma de genocídio por omissão, negar educação não deve ser considerado diferentemente.
Cristovam Buarque é senador pelo PDT do DF e ex-reitor da Unb