O que aconteceu para que o Senado, com 180 anos, respeitado e admirado por seu passado, de repente, perdesse sua credibilidade?
O que foi que aconteceu para que, depois de cento e vinte anos de República, o Brasil ainda seja um país tão dividido no acesso à saúde, à educação, à moradia, tão diferenciado entre pobres e ricos – como se tivéssemos uma aristocracia encastelada e um povo abandonado?
O que aconteceu para que, cento e vinte e um anos depois da Abolição da Escravatura, as boas universidades continuem reservadas para brancos e as prisões para negros?
E por que a Justiça no Brasil se faz de maneira tão desigual quando julga um réu conforme a sua riqueza?
O que foi que aconteceu para que a corrupção seja tão tolerada pelas instituições e pelos eleitores, apesar de tão denunciada e criticada pela mídia?
O que aconteceu para que o sonho da energia renovável do etanol seja colocado de lado pela proposta da energia fóssil do petróleo?
Por que a hipótese do pré-sal domina muito mais o imaginário brasileiro do que a realidade da pré-escola?
O que foi que aconteceu para os partidos ficarem todos iguais? E os intelectuais calados em um silêncio reverencial? E os sindicatos acomodados? E os estudantes dóceis diante de governos que não lhes oferecem a educação a que têm direito?
O que foi que aconteceu para que a população considere que é melhor ficar parado nos monumentais engarrafamentos de automóveis a ir rápido graças à implantação de um eficiente sistema de transporte coletivo? E que motivo leva os governantes a não implementarem um eficiente sistema de transporte coletivo?
Por que os dirigentes perderam a capacidade de propor alternativas para os rumos do País?
O que aconteceu para os candidatos a presidente se preocuparem tanto com a aceleração do crescimento da economia e nada de imaginarem mudanças na estrutura social e econômica do País?
O que aconteceu que as famílias brasileiras se desarticularam, perderam aglutinação, fazendo com que as mulheres estejam sozinhas e os filhos nas ruas?
O que aconteceu para que, no Brasil, o imposto para automóveis seja reduzido no mesmo ano em que se aumenta o imposto sobre os livros?
Que aconteceu com as escolas públicas que eram de qualidade e recebiam os filhos das classes média e alta, e agora estão abandonadas, apenas para os filhos dos pobres, a ponto de muitas escolas se transformarem em simples restaurantes aonde as crianças vão pela merenda, sem aulas, sem dever de casa, sem aprendizado?
O que foi que aconteceu para o Brasil destruir a Mata Atlântica, reduzida a apenas 3% do seu tamanho anterior?
O que foi que aconteceu para que o Brasil trate tão mal seus velhos, suas crianças, seus professores? E para que o Supremo Tribunal Federal consiga com rapidez e naturalidade o aumento no teto salarial dos juízes e não aceite definir como constitucional o piso do salário para os professores?
O que foi que aconteceu para os partidos políticos terem se derretido, na ausência de ideologia e de programa?
Como explicar que conseguimos saldar a dívida externa, mas não a social; usamos dólares para pagar bancos, mas não usamos reais para alfabetizar, educar, garantir acesso à saúde?
O que aconteceu que o pacato homem brasileiro se transformou em assassino no trânsito, destruidor de florestas, assaltante em sinais de trânsito, cínico diante do sofrimento social, conivente com a corrupção?
O que foi que aconteceu para que, no Brasil, viaduto ficasse mais importante do que escola e postos de saúde?
O que aconteceu que os centros de nossas cidades foram abandonados, substituídos por shoppings e condomínios? Como foi que o Brasil se transformou em um labirinto de muros dividindo e separando o seu povo em dois?
O que foi que aconteceu que nossos universitários ficaram conservadores, egoisticamente voltados para si, e as universidades de costas para o povo?
O que aconteceu para permitir que o pragmatismo das pequenas transferências de rendas substituísse os sonhos de revolução social?
Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF