RECENTEMENTE, quando estive em Salvador para receber honrosa homenagem da Universidade Federal da Bahia, conheci o Cria, uma organização não governamental que se dedica a formar crianças e adolescentes para, por meio da arte, transformarem a si mesmos e suas comunidades.
Foi emocionante vê-los numa apresentação teatral, se apropriando tão bem da linguagem, da expressão corporal, da capacidade de metaforizar sua realidade e também de contar a própria história, às vezes dolorosa, mas não como repetição do trauma, do beco sem saída. Vi crianças falando da ausência do pai, mas valorizando o papel da mãe, como alguém que trabalha, ampara, fica junto, dá força. E tudo de forma lúdica, como história não só do sofrimento, mas das boas descobertas na família e em todos os espaços da vida que despertam a vontade de ter um lugar no mundo.
Muitas ONGs têm papel essencial de mediadoras na formação de crianças e jovens. Ajudam-os a traduzir a realidade e a querer interferir nela, marcando sua forma de aprender e de expandir seu saber. E por que a própria escola no Brasil não o faz? Não basta demandar mais dinheiro para a educação. Crianças não são estatísticas. São seres humanos que precisam da mediação correta, desde a primeira infância, para construírem sua trajetória de forma digna e autônoma.
Os indicadores relativos à infância têm melhorado, ainda que lentamente, mas algo substantivo não mudou. Os dados da última pesquisa domiciliar do IBGE (Pnad) mostram que meninos e meninas demoram a entrar na escola e, quando entram, nem sempre aprendem a ler ou a escrever corretamente ou, se o fazem, não transformam essa habilidade em desejo pelo conhecimento.
Um artigo recente do médico João Augusto Figueiró alerta para o grande desafio que temos em relação às nossas crianças e adolescentes. “Todos nós construímos um mapa da realidade a partir das experiências vividas na infância”, diz ele.
A construção de um país também tem a ver com a maneira pela qual a infância é valorizada e protegida. Isso é muito mais do que usar ferramentas econômicas adequadas. Está na hora de os governantes ficarem de olho em experiências como a do Cria e tantas outras que precisam ganhar a escala das políticas públicas.
Talvez aí esteja o mistério do gigante adormecido que começa a despertar, mas ainda não entende bem o que o deixou letárgico por tanto tempo. A resposta pode estar perto, numa das inúmeras esquinas belas e criativas do Brasil, onde muita gente oferece seu esforço, ávido do maior reconhecimento que existe, que é o de saber que ajuda a tornar o país melhor.