No Brasil, idéias ruins têm uma enorme capacidade de sobreviver ou ressuscitar. De tempos em tempos, saem das tumbas projetos para repatriar recursos remetidos ilegalmente para o exterior ou para autorizar funcionamento de bingos.
Era dada como morta a proposta de reforma tributária que tramita na Câmara dos Deputados. De repente, ela ressurge com pretensão de ser aprovada até o final deste semestre. Como a atual administração federal aprecia largamente os atos de fachada, não raro demagógicos, em desfavor das reformas estruturais, alardeia-se a disposição de “fazer a reforma tributária” a qualquer custo e de qualquer forma.
Conheci, muitas vezes com participação ativa, todos os projetos de reforma tributária nos últimos 40 anos. O atual projeto é o pior de todos eles, conseguindo a proeza de suplantar, em má qualidade, a esdrúxula “teoria do barquinho”, que permeou conhecido projeto de reforma tributária. As proposições nele inseridas ocupam um vasto território de inconsistências e iniqüidades. Pretendo destacar algumas delas.
Preliminarmente, o projeto erra por eleger a via constitucional para produzir mudanças legislativas, que, caso fossem razoáveis, poderiam ser implementadas por meio de normas infraconstitucionais, a exemplo do princípio do destino (resolução do Senado), harmonização das legislações do PIS e Cofins ou do IRPJ e CSLL (lei ordinária) e minimização das diferenças entre as legislações do ICMS (lei complementar).
Pretende-se constitucionalizar ainda mais o sistema tributário brasileiro, já massacrado por uma excessiva judicialização, em detrimento da indispensável segurança que deve presidir as relações entre o fisco e o contribuinte. No projeto em pauta, chega-se ao absurdo de fixar alíquotas interestaduais do ICMS no texto constitucional.
No intuito de simplificar, propõe-se instituir um imposto sobre operações onerosas com bens e serviços, que resultaria da fusão do PIS, Cofins e Salário-Educação. Esse imposto, apelidado na mensagem de IVA Federal, não conhece paradigma na história tributária. Seria algo a ser definido por uma futura lei complementar. Mais grave, reproduz as mesmas vinculações cometidas àquelas contribuições, o que, por um lado, é despiciendo e, por outro, é inadequado, pois prever vinculações para imposto – o que, ao menos doutrinariamente, é conceito inerente às contribuições.
A extensão da partilha a todos os tributos federais produz a maior contaminação fiscal de que se tem notícia em regimes federativos. Cada exigência de elevação das receitas federais, qualquer que seja o tributo, terá uma repercussão desproporcional sobre o contribuinte, em virtude da obrigatória partilha com os demais entes federados.
A intensa e desarrazoada guerra fiscal do ICMS inspirou a adoção do princípio do destino, que consiste em cobrar o imposto exclusivamente no Estado em que ocorre o consumo. Pressupõe-se que a guerra fiscal só existe por conta da possibilidade de transferir para outros Estados o ônus do benefício fiscal concedido em uma Unidade Federada. Ledo engano. Ninguém faz guerra fiscal para prejudicar terceiros, e sim para lograr vantagens para si. Guerra fiscal existe, porque não se cumpre a vigente Lei Complementar nº 24. Há uma espécie de lassidão dos Estados prejudicados, amparada pela indiferença da Justiça e do Ministério Público.
Princípio do destino jamais foi adotado, por seus efeitos perversos: aumenta a propensão a sonegar, pela possibilidade de fraudes nas operações interestaduais, privilegiadas por uma baixa alíquota vis-à-vis as internas; sujeita o contribuinte à fiscalização de todos os fiscos estaduais, uma vez que o interesse fiscal extrapola o território da Unidade Federada em que se localiza o contribuinte; e, sobretudo, desequilibra a Federação pelas perdas que impõe aos Estados exportadores líquidos, cuja compensação ficaria à conta de um enigmático fundo que iria prover uma “bolsa ICMS”.
Curiosamente, ao pretender erradicar a guerra fiscal, o projeto, na prática, convalida todos os benefícios fiscais concedidos ilegalmente. Pode-se concluir, portanto, que não haverá guerra por falta de pólvora ou interesse.
É óbvio que temos problemas tributários, como, de resto, todos os países. Esse fato, entretanto, não autoriza concluir que tais problemas devam ser objeto de uma solução qualquer, pois a dramaticidade da doença não autoriza o doente tomar veneno. Estaríamos agora diante de um projeto de irresponsabilidade fiscal?
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal