De tempos em tempos, surgem propostas visando à repatriação de capitais brasileiros remetidos ilegalmente para o Exterior. Reproduzem iniciativas levadas a cabo em outros países, com especial destaque para o que se fez recentemente na Itália.
A tese é aparentemente meritória. Pode, entretanto, produzir efeitos extremamente nocivos, tanto do ponto vista moral quanto legal.
Os capitais transitam entre os países à procura de uma adequada combinação de rentabilidade, segurança e liquidez. Esse fluxo é limitado por regras locais que às vezes variam em função das circunstâncias. Ainda que eventualmente excessivo, o disciplinamento do fluxo não pode ser tido, por óbvio, como pretexto para a evasão ilegal.
O Senador Delcídio Amaral (PT-MS) apresentou projeto de lei no Senado dispondo sobre a repatriação de capitais brasileiros. Não tenho dúvidas quanto ao bom propósito do parlamentar, dono de uma respeitável biografia. Faço, contudo, sérias restrições à proposta.
Na essência, o projeto pretende oferecer um favor fiscal aos que repatriarem capitais, sob a inapropriada denominação de “anistia onerosa” – contradição em termos, pois o perdão da anistia não pode ser entendido como ônus. Argumenta que o projeto é uma iniciativa voltada para a cidadania fiscal, o que constitui minimamente um exagero, porquanto se sabe que tal representação da cidadania transita em campos mais elaborados das políticas públicas.
O autor do projeto admitiu, também, acrescentar no texto original a possibilidade de instituição de paraísos fiscais no País, o que se significa importar uma forma de tributação nociva contra a qual existe uma crescente condenação nos foros internacionais, a exemplo do que ocorreu na última reunião do G-20. Os paraísos fiscais são reconhecidamente abrigos financeiros para atividades criminosas, inclusive o terrorismo.
A evasão ilegal de divisas está quase sempre associada a práticas delituosas, como sonegação, descaminho, contrabando, extorsão mediante seqüestro, narcotráfico, corrupção nas empresas ou na administração pública. O projeto propõe a extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, previdência social e sistema financeiro nacional, isto é, os crimes situados na órbita da evasão fiscal e de divisas. Exclui expressamente a extinção da punibilidade relativamente à lavagem de dinheiro.
Os ilícitos fiscais, na forma da legislação vigente, podem ser resolvidos por meio do arrependimento eficaz, consistindo na denúncia espontânea da infração. O pagamento dos correspondentes tributos implica extinção da punibilidade ou, no caso de parcelamento, suspensão da pretensão punitiva do Estado. A matéria já se encontra pacificada em jurisprudência do STF.
Por conseguinte, a infração fiscal, mesmo quando esteja vinculada a depósitos no Exterior, pode, por iniciativa do contribuinte, ser sanada. Até a hipótese de anistia, ainda que censurável, já consta de projetos de parcelamentos em tramitação na Câmara dos Deputados. Inadmissível, entretanto, é que existam privilégios para os que efetivaram remessas ilegais para o Exterior.
Tem-se como pressuposto que o projeto se destina apenas a cuidar de evasão ilegal de divisas associada à evasão fiscal. Como, todavia, proceder à distinção entre essa e as outras situações delituosas? Certamente, não se pretende anistiar narcotraficantes, corruptos, seqüestradores, terroristas, etc.
Deveria, então, o infrator demonstrar que a evasão resultou exclusivamente de sonegação? Seria algo, ao menos, curioso, afora demandar prova verdadeiramente diabólica. O autor aventou a possibilidade de conferir às instituições financeiras, na condição de agentes fiduciários, a responsabilidade para examinar e atestar que houve apenas sonegação. Não seria uma delegação excessivamente temerária?
O projeto trata de favores apenas no âmbito do IR e da CSLL. O que fazer, todavia, em relação aos demais tributos federais? De mais a mais, ele não poderá dispor sobre favores relacionados com tributos estaduais e municipais, sob pena de franca inconstitucionalidade. A sonegação, como se sabe, não é seletiva, nem guarda preferência por modalidade de tributo. Haveria interesse do infrator em ser exonerado das sanções tributárias e penais, apenas em relação a uma parcela do que foi sonegado?
Qual o destino dos capitais brasileiros remetidos ilegalmente para o Exterior? Muito provavelmente se encontram depositados em fundos ao portador de instituições localizadas em paraísos fiscais, cuja titularidade somente é conhecida pelo próprio titular e pela instituição.
Muitos investimentos estrangeiros no Brasil são oriundos desses fundos e recebem tratamento tributário privilegiado em relação ao aplicador residente no País. Será que esses investimentos estrangeiros não são, em parte, capitais brasileiros remetidos ilegalmente para o Exterior? Teriam eles interesse na repatriação, sujeitando-se a interpretações controversas e maior taxação?
O tema é instigante e não tem uma resposta simples. No meu entender, as deficiências do projeto de lei são irremediáveis.
Everardo Maciel foi secretário da Receita Federal.